A ditadura está à espreita e seu caminho é o ataque ao Congresso

No Brasil de Jair Bolsonaro, a resistência ao autoritarismo precisa acontecer

 

No Brasil, os fatos políticos costumavam ser chamados pelo nome e representados em datas. Assim, 1964 foi o ano do golpe civil-militar que instalou a ditadura, a democracia que sobreveio a este período foi composta em pedaços: 1985 com a presidência civil mesmo que via colégio eleitoral, 1988 com a constituinte e 1989, com a primeira eleição direta para o comando do país.

 

Entre 2003 e 2014, pela primeira vez o sistema democrático transcendeu os processos eleitorais em direção à garantia de direitos econômicos e sociais. O contexto de expansão democrática não representou uma correlata mudança nos valores culturais sobre a democracia. Assim, o país viveu todo o período num descompasso entre a democracia política e suas demais vertentes, sem uma participação efetiva e organizada da sociedade nas decisões políticas.

 

A ideia de que o Estado autoritário é que mantém a segurança está presente em parcela populacional para a qual a violência de agentes públicos é vista com naturalidade, assim como o alto número de mortes de pobres, negros, jovens periféricos. Quem pensa assim é capaz de aplaudir quem aplaude torturadores. Quem age assim, ano após ano, responde à pesquisas que indicam a redução de confiança na democracia. No início afirmava que ela seria irrelevante, agora sustenta que ela é desnecessária, logo mais dirá que suas instituições são um estorvo e marchará novamente pela ditadura nas ruas.

 

Essa escalada não foi espontânea.

 

A partir de 2013 entrou em cena o plano para desestabilização política das instituições. A elite nacional, associada a interesses externos, avaliou que seus interesses imediatos estavam em risco diante da persistente crise econômica global, contexto que contrastava com a manutenção de políticas de distribuição de renda e garantia de direitos vigentes no país.

 

O modelo de “impulsionar renda para formar um mercado interno pujante” onde todos estavam ganhando, exigiria a contínua ampliação de investimentos orçamentários para os mais pobres. Só assim se manteria a diretriz de superar s desigualdade estrutural no Brasil. A sustentabilidade deste modelo também exigiria a continuidade e ampliação de investimentos educacionais para a superação Inter geracional da miséria.

 

O projeto de desenvolvimento nacional esbarrou não apenas em interesses econômicos imediatos contrariados, mas na histórica deformação das elites nacionais que são parte de uma cultura de opressão, mais elitista e menos de responsabilidade para com a nação.

 

Uma cultura antidemocrática que é por natureza excludente. A moral dominante se compadece dos que têm fome de comida e até aceita que sejam alimentados, mas não admite que os oprimidos deste país sequer sintam fome de autonomia, muito menos que busquem saciá-la nas escolas, universidades, na ciência, no saber.

 

No plano traçado, as eleições de 2014 seriam para interromper este processo. Mas 2014 deu vitória para Dilma, resultado que não estava no script. Os donos do plano então perceberam que o PT não sairia tão cedo por via eleitoral. Aí, entre 2014 e 2016 o Brasil viveu a “democracia em vertigem”.

 

Desde 2016 vivemos um tempo híbrido, no qual o Brasil pode ser caracterizado de várias formas, nenhuma capaz de mostrar um contínuo entre o antes e depois do golpe institucional midiático daquele ano.

 

No entanto, parece ser parte da ilusão de ótica destes tempos, que muitos sigam com dificuldade de acreditar no que finalmente veem: de 2016 pra cá, a democracia como a experimentamos no país, acabou.

 

Desde 2018 o país passou a uma etapa da história na qual figuras contra a democracia, que chegaram ao poder pelo voto, possuem poder para sabotá-la. Alguns fatos e datas, dirimida a névoa de desagregação que espalham no país, mostram claramente como o autoritarismo em ação provoca contradições e dúvidas.

 

Em 2018 tivemos eleições, mas elas não foram livres de fato. É reconhecido que a dinâmica eleitoral daquele ano sofreu interferência por manipulação judicial nos processos contra Lula, e por ação midiática dos disparos em massa de fakes via WhatsApp contra Haddad, tudo para favorecer o candidato da extrema-direita. Isso definitivamente não é da democracia.

Por outro lado, o Congresso Nacional parece em funcionamento normal na legislatura que iniciou em 2019. Pode ser um elemento da democracia, mas os ataques de Bolsonaro ao Congresso mostram que não é bem assim. O presidente da república agora convoca ato pelo fechamento do Congresso e mostra que o parlamento já está afetado pelo autoritarismo.

 

O desrespeito ao poder Legislativo vai muito além de ministros vociferando ignorância e prepotência em comissões, está presente na sua instrumentação pelo governo. Câmara e Senado foram por maioria, avalistas da descaracterização do Estado nacional, da entrega do patrimônio público e da retirada de direitos dos trabalhadores. Foi muito útil ao governo e ao mercado que a composição de ambas as casas seja resultado da mesma manipulação eleitoral feita para a presidência da república, cuja cobiça maior é justamente destruir garantias, direitos fundamentais e a soberania nacional presentes na Constituição.

 

Até então interesses comuns mantiveram unidos diferentes na política, semelhantes na economia. A agenda econômica, no entanto, mesmo com o país sem mostrar reação diante da crise que afeta famílias e destrói empregos formais, ajudou a consolidar Bolsonaro. Agora suas garras se afiaram.

 

O Parlamento entregou cheque em branco para quem quer calar sua voz em sua maioria nem tão dissonante, assim. Mas os autoritários sabem que basta uma voz, se ela carregar palavras de justiça, para acordar toda a nação. E por este motivo querem fechar suas portas.

 

2020 é o ano em que a ditadura está à espreita e seu caminho é o ataque ao Congresso Nacional. Os que chegaram ao poder empunhando metralhadoras contra adversários em comícios, não respeitam o voto, nem mesmo os votos que receberam. Creditam sua vitória aos gritos, desrespeito, violência. Só isso explica não se furtarem a homenagear torturadores como Ustra e bandidos milicianos como Adriano da Nóbrega. Eles endeusam o mal, a violência e a morte. Usam a linguagem do desrespeito, da humilhação e do ódio e pronunciam-se em tom intimidatório.

 

Se estes estão entre os que vivem o achincalhamento moral cotidiano do governo que visa calar suas vozes, a violência em curso abrange muito mais gente. Ela investe em jogar “cidadãos de bem” contra bandidos e taxa todo mundo que está em desacordo com ideias e identidade estipulada como regular pelo Estado, como inimigos internos a serem eliminados.

 

Assim, se valem da cultura mais profunda do Brasil, aquela que o faz um país racista e desigual, para disseminar o medo em comunidades, granjeando apoio para atos que jamais poderiam receber qualquer simpatia, como o uso desproporcional da força estado contra seus cidadãos.

 

O ataque de Bolsonaro ao Congresso não se dá sem que a ideia esteja sendo testada. Como em momentos anteriores, o governo lança um absurdo, tática já utilizada no episódio de defesa do AI5. A questão é que a cada volta, a sociedade mais se acostuma e regulariza o absurdo lançado. Até ao ponto em que tanto poderá fazer que seja implementado ou não.

 

Usar o poder de Estado contra a nação e os princípios constitucionais numa mobilização contra o Congresso Nacional, é um crime de responsabilidade passível de impedimento de suas funções na presidência da república.

 

Não é dado ao governante o direito de atentar contra a Constituição, os poderes e a unidade nacional. Como afirmou Ulysses Guimarães: “Traidor da Constituição é traidor da pátria”.

 

O crime é grave e não pode ser minimizado. Não se configura como mera insanidade, mesmo que carregue alguns elementos desta natureza. É ação calculada, que parece sincronizada aos fatos gravíssimos dos últimos dias: ataque à liberdade de expressão, aos veículos de comunicação e jornalistas; ataque aos governadores, sobretudo da Bahia, e crise na segurança do Ceará. Ambos estados dirigidos por governadores do PT.

 

Como desconsiderar que para uma tentativa de golpe contra as instituições nacionais movam-se taticamente iniciativas que fomentem dentro das tropas das Polícias Militares a quebra do comando dos governadores? A resistência começaria a ser desmontada antes mesmo de existir.

 

O ataque federal ao governador da Bahia não visava a verdade sobre as circunstâncias de morte de Adriano Nóbrega, mas influenciar a Polícia Militar do estado contra a autoridade estadual. A resposta em defesa da federação e de Rui Costa foi assinada por 20 governadores de estados brasileiros.

 

Os bolsonarianos são craques na manipulação. Eles tornaram-se elo e construíram um apelo discursivo pelo qual conectam crime e polícias.

 

Através da família presidencial o país adentrou no universo das milícias, uma realidade que até nem pouco tempo era tida exclusivamente do Rio de Janeiro.

 

Fazem isso sustentando o chamado “excludente de ilicitude” na prática, defendendo como legal que o agente de segurança mate quem quiser, como quiser, sem responder por isso.

 

De outro lado, homenageiam policiais que foram expulsos das PMs, justamente pelos freios aos abusos de autoridade e violência que o sistema ainda possui. O PM expulso carrega a aura de injustiçado porque a lógica é a de grupo de extermínio, e de que ele estaria defendendo a sociedade de bandidos. Além disso, o sujeito é homenageado na política, ganha medalha mesmo preso, acaba livre e mais, ganha dinheiro. É um escárnio contra todo policial honesto, que o padrão de vida do criminoso supere em muito o daqueles que seguem no caminho da justiça.

 

Um país que vive sob um governo assim, onde pessoas politicamente próximas se afastam e relatam a presença de paranoias e descompensação no centro do poder, indica que a situação fica mais grave quando denúncias comprovadas vêm a público. Os Bolsonaros tentam não se afogar no sangue das vítimas das milícias do Rio, na queima de arquivo de criminosos, nos foragidos.

 

As relações políticas impróprias e rasteiras do titular do mais alto posto da nação com pessoas vinculadas ao crime devem alertar toda a sociedade.

 

Não se some a esta movimentação uma presença das Forças Armadas já estabelecida. A ampliação da presença militar no governo pode ser parte da estratégia para obter maior influência pró aventura contra a Constituição, mas estas instituições encontram-se em disputa.

 

Há um elemento a ser considerado com maior vagar, associado ao risco que representa para Bolsonaro, que Trump, o presidente norte-americano a quem o governante brasileiro entregou as chaves do nosso país, venha a perder as eleições nos EUA. Todas as fichas de apoio internacional aos gestos golpistas de Bolsonaro encontram-se restritas a Trump. Isso explicaria a movimentação antecipada de um ataque a instituições que o palácio pode já estar planejando para executar com mais tempo.

 

É urgente que todas as matizes políticas defensoras da democracia constituam ação unitária capaz de impedir o avançar desta trajetória que pode transformar o governo Bolsonaro em governo autoritário, sem controle institucional do Congresso. A resistência precisa acontecer nas instituições, na comunicação e nas ruas.

 

Restará quase nada da democracia desenhada pela Constituição de 1988, a continuar neste ritmo de ataques. Sua configuração poderá ser total antes mesmo de 2022. A última vez que caímos em uma ditadura era março. Foram 21 anos antes que amanhecesse novamente. Entretanto, é bom lembrar, quando se trata de liberdade, a história guarda nome e sobrenome dos ingênuos e omissos ao mesmo lado em que ficam o nome dos traidores.

 

Publicado em: Carta Capital

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