Como explicar no futuro o retrocesso do Escola sem Partido?

‘Escola com Mordaça’ seria melhor nome do projeto de lei


Daqui a algumas décadas, quando os livros de história se referirem ao nosso tempo, provavelmente o anti-intelectualismo será uma das marcas. As gerações futuras nos perguntarão como foi possível que o pensamento medieval, supersticioso e pré-iluminista ocupasse as mentes de uma época em que o acesso à informação tornou-se ilimitado e imediato.

As respostas que serão encontradas dependem em muito da resistência que realizamos no presente. A aversão ao pensamento intelectual não é fenômeno restrito a reflexões de ordem teórica e cultural.

No Brasil, ela está associada ao ressurgimento de movimentos contrários à laicidade do Estado e que já comprometem esse princípio nas disputas eleitorais nacionais, bem como na composição e decisões dos governos e parlamentos.

O coroamento desse movimento retrógrado encontra-se na perseguição política desses segmentos à prática docente, buscando aprovar uma Lei contra a liberdade de cátedra e com meios para censurar e punir educadores discordantes de suas linhas explicativas.

Desta forma pretendem tutelar a escola e transformar cada sala de aula em um lugar onde a reflexão crítica não possua espaço, onde se despreze o trabalho artístico, criativo e científico. Um lugar de repetição do medo e de dogmas.

Com esse objetivo é que uma das principais bandeiras levantadas pela extrema-direita brasileira desde a eleição de 2014, reproduzida também em outros países, é o estapafúrdio projeto oportunisticamente denominado “Escola sem partido”.  O nome Fake tornou-se atrativo aos amplos segmentos que nutrem repulsa à política, fenômeno não ocasional, fruto da combinação de críticas legítimas com o desgaste propagandístico para beneficiar o conservadorismo político e econômico no país.

O projeto com maior verdade pode ser chamado de “Escola sem liberdade, sem criatividade, sem diversidade” ou “Escola com Mordaça”, como os educadores brasileiros já o denominam. Incapazes de absolutizar sua visão atrasada de mundo em cada sala de aula e assegurar que seja repassada aos alunos pelos professores, os grupos fundamentalistas que alcançaram espaços políticos buscam disseminar o medo e coagi-los.

Perseguem teorias e pesquisas consistentes, criatividade, artes e qualquer traço de formulação crítica. O extremismo usa de calúnia contra professores e pesquisadores, comprometendo o progresso humano e social. Apresentam-se como críticos à “ideologização”, mas impõe sua linha ideológica como a única a ter espaço e ser validada na escola e na academia.

A constituição cidadã e a liberdade de expressão           

No pós-ditadura, o Brasil construiu e aprovou uma das Constituições mais avançadas do mundo. A “Constituição Cidadã” de 1988 garantiu plenamente o direito à liberdade de expressão e organização, mas também evoluiu nos ideais de igualdade e solidariedade.  A CF/1988 não se limita a ser um mosaico de direitos fundamentais, mas possui o fio condutor nas garantias individuais e coletivas previstas no Artigo 5° que define o direito à liberdade como integrante de todas as esferas da vida humana e da cidadania, sobretudo na educação.

A Constituição Federal e a legislação dela decorrente, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/1996) e o Plano Nacional de Educação PNE (Lei 13.005/2004), definiram os rumos de um país democrático, com instrumento normativos capazes de enfrentar as desigualdades e possibilitar às pessoas viverem em comunidade e com condições de serem felizes.

Assim, o Projeto Escola da Mordaça fere os princípios democráticos da educação brasileira, e o Projeto de Lei deve ser derrotado por ser inconstitucional e contrário ao interesse público.

A garantia da liberdade de ensino e aprendizagem é essencial para superar o passado de autoritarismo e arbitrariedade que forma a cultura nacional e assegurar plenos direitos humanos e sociais. Se a vida em comunidade pressupõe o convívio com as diferenças, o ato de impedir que a heterogeneidade humana, social e cultural se manifeste na educação visa podar a diversidade que caracteriza a sociedade brasileira.

O projeto é uma intervenção na vida escolar e acadêmica que desconsidera os limites da atuação parlamentar, usurpando funções normativas do Conselho Nacional de Educação e os saberes pedagógicos desenvolvidos por educadores brasileiros.

Os discursos em sua sustentação são pérolas da ignorância anti-freiriana, modismo ridículo entre os incautos pretensiosos da extrema-direita. Hoje, como em 1964, os interventores de escolas perseguem Paulo Freire, o homem e a obra, desconhecendo a força de seu pensamento no Brasil e no mundo para uma escola crítica, humanista e transformadora.

Paulo Freire mais uma vez simboliza a resistência e a dignidade de educadores e educadoras no chão da sala de aula, aqueles que são caluniados e desrespeitados pelos defensores da “Escola Sem Partido”, e que pouco ou nada dizem sobre a “Escola sem salários dignos, sem merenda, sem material didático”, construída quando aprovaram a Emenda Constitucional 95 para congelar 20 anos de direitos educacionais.

Resistimos à mordaça porque sabemos que ou a educação é lugar de troca e aprendizados mútuos, de pluralidade de ideias e respeito à liberdade e aos direitos humanos, ou não será educação, mas mera robotização humana.

A Escola que o fundamentalismo político e religioso quer definir é um espaço em que os estudantes estejam impedidos de participar da vida política nacional, um lugar de apagamento de identidades e especificidades individuais, impedimento do convívio entre diferentes, caguetagem, desrespeito aos mestres e mestras e a alunos que não se encaixam no padrão definido como aceitável.

A irresponsabilidade com a vida humana chega ao limite do absurdo quando parlamentares dissociados da realidade buscam impor suas crenças a todos os brasileiros e brasileiras na vida escolar. Justamente no país em que as mulheres mais têm suas vidas ceifadas pela violência de gênero, onde pessoas LGBT’s (sobretudo os jovens) mais são assassinados, como é possível  impor à escola o silêncio sobre essa situação? A opção é absurda!

É triste intuir que os próprios princípios religiosos que dizem defender não são observados por eles, sobretudo por esses parlamentares que se apresentaram como cristãos.  Ao buscarem construir políticas públicas que reproduzem seus olhares persecutórios contra os temas de gênero na escola, não apenas ampliam o risco a que segmentos vulneráveis estão submetidos, mas dificultam a identificação da violência e exploração sexual de crianças e adolescentes, missão que a escola tem cumprido mais do que qualquer outra instituição.

Como uma criança ou jovem se dirigirá a educadora ou educador, se um cartaz do lado do quadro verde estará visivelmente proibindo o profissional de tratar sobre temas de gênero? Como o educador poderá justificar a atuação que realiza por compromisso humano com as crianças, salvando suas vidas, mesmo enfrentando graves perseguições de familiares e integrantes das comunidades que praticam a violência sexual?

Permito-me acreditar que nenhuma religiosidade indica esse caminho. Talvez só a da manipulação e uso político. O desprezo à condição humana, a ausência de solidariedade e a fraternidade, o julgamento precipitado, pelo menos em termos cristãos é associado aos fariseus do templo, que muito sabiam sobre as leis, mas não as praticavam como denunciou o próprio Cristo.

Todo projeto que relativiza a dignidade da pessoa humana não pode se reivindicar orientado por princípios universalmente reconhecidos como cristãos. Além das irresponsabilidades que permeiam a tramitação dessa matéria, ela relembra tempos tristes de censura e de tentativa de sufocamento pelo poder estatal.

Um dos artigos apresentados pelo deputado relator, em seu substitutivo ao Projeto de Lei, prevê a fixação de cartazes em todas as salas de aula, constrangendo professores e estimulando o “dedurismo” dos alunos contra seus mestres. Se antes a professora e o professor eram seres respeitados, a prática fomentada por lideranças e seguidores do movimento Escola sem Partido tem gerado uma cultura de ódio e perseguição dentro das escolas desde já, mesmo sem aprovação da matéria.

Avolumam-se os casos de violência contra educadores. Tomando Porto Alegre como exemplo, em apenas duas semanas, entre o final de outubro e o início de novembro, quatro professoras foram vítimas de agressões físicas praticadas por alunos e familiares. Uma situação insustentável já acontece nas escolas com a desautorização e desrespeito aos professores.

As mudanças em curso no Brasil são rápidas, intensas e de caráter reacionário. O autoritarismo que destrói liberdades, combate a ciência, a cultura e as demais expressões da humanidade.

Ao governo que chega eleito pelo pânico moral e pelo fomento ao ódio não basta destruir vagas na educação pelo corte orçamentário. Sua ambição é o controle ideológico da educação, o pensamento único e a submissão das novas gerações. Ao longo de quase trinta anos a Constituição foi a referência do direito à educação com bases democráticas. Isso se inverte agora, quando os princípios constitucionais estão em grave risco.

Sob a égide da democracia, professores, artistas, pesquisadores puderam realizar seus trabalhos com liberdade assegurada pela norma constitucional. Foram governos democráticos que fizeram a educação avançar e diminuir seu atraso crônico no campo educacional incluindo milhões de crianças, jovens e adultos brasileiros. É essa liberdade que querem amordaçar para impor uma cultura política de medo, repressão e conformismo, sobretudo à juventude.

Agora responda: Que páginas sobre o tempo presente você quer ver escritas nos livros de história das futuras gerações?

Ou melhor, essas páginas serão escritas em escolas com liberdade ou amordaçadas pelo autoritarismo do falso Projeto de Lei da “Escola Sem Partido”.

Maria do Rosário é Deputada Federal (PT-RS)


Publicado em Carta Capital

 

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