Violência de gênero, marca de uma cultura que precisa mudar

Falta generosidade quando não se reconhece que a desigualdade de gênero está na raiz da violência contra mulheres e meninas.

 

Os números da violência contra as mulheres são contundentes no Brasil: entre fevereiro de 2018 a fevereiro de 2019, cerca de 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento, 22 milhões de brasileiras passaram por algum tipo de assédio. Entre os casos de violência, 42% ocorreram no ambiente doméstico.

 

Segundo o Mapa da Violência (2018), a cada 2 horas uma mulher é morta no país. Após sofrer uma violência, mais da metade delas (52%) não denunciou o agressor ou procurou ajuda. Já os boletins de ocorrência mostram o recrudescimento das crueldades físicas, psíquicas, sexuais e mutilações.

 

Em geral são essas as notícias divulgadas quase todos os dias nas redes e nos meios de comunicação. Chocam, indignam, mas não mobilizam. Nos remetem às ideias do pensador Bourdieu, quando fala da transformação dos fenômenos sociais recorrentes como se fossem parte da natureza. Com o tempo, é  como se sempre tivessem existido.

 

Segundo ele, os fatos sociais são como as tatuagens. Se inserem de tal modo na pele, que para apagá-las são necessárias outras marcações, maiores e mais fortes. Assim é a violência contra as mulheres, esquecida no dia seguinte. A marca mais forte para nós que a vivenciamos direta ou indiretamente, é a ação do estado e da sociedade para preveni-la, puni-la e erradicá-la e a formação de uma nova cultura baseada no respeito.

 

Foi sob estas bases que se aprovou a Lei Maria da Penha em 2006, após um longo processo de luta do movimento de mulheres. Foram trinta anos de denúncias e a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Justiça no Caso Maria da Penha. Hoje ampliada com a Lei do Feminicídio, a Lei da Violência Sexual e as Normas Técnicas para Atendimento aos Agravos da Violência Sexual, orientou os marcos político e de gestão dos quatro governos do Partido dos Trabalhadores.

 

Hoje, compreende-se a violência contra as mulheres e meninas como uma construção cultural baseada na desigualdade de gênero, atravessada por outras formas de hierarquização social: raça e etnia, idade, local de moradia, sexualidade, pobreza, deficiência. Marcadores que determinam a forma como a violência atinge mulheres de todas as idades.

 

Bem diferente da década de 1970, quando se levantou pela primeira vez a voz na histórica campanha “Quem ama não mata” e não se conhecia ainda sua real natureza e seus impactos. Concordamos com a professora potiguar Mirna Cisne quando diz que é a face mais brutal e explícita do patriarcado, que fere a dignidade e a integridade física ou psicológica da mulher.

 

A violência de gênero, mesmo que não fatal, é uma forma insidiosa de destruir e impactar a qualidade de vida, invade lares, locais de trabalho, transporte coletivo, locais de lazer, salas de parto, meios de comunicação, redes sociais, fomentando o medo em todas as mulheres de toda as idades. Leva a que meninas se submetam ao abuso sexual, ao sexo forçado e sofram tapas e empurrões de namorados. Em muitos casos há uma ação de mercado, que no caso das meninas revela o caráter transgeracional da violência de gênero pelo poder que se exerce no corpo.

 

Já em 2003, na CPMI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, constamos e registramos no relatório final que  a lógica da violência e da exploração sexual – uma das piores formas de violência de gênero –  é a da total desconsideração com os sentimentos, necessidades e a própria existência com a natureza humana da vítima, processo pelo qual se desumaniza quem é atingido, destruindo sua identidade pela transformação desta pessoa em mercadoria, em objeto.

 

Bem diferente do que outro dia afirmou irresponsavelmente uma autoridade brasileira – não se trata de falta de roupa íntima. Pois na violência contra as meninas não apenas o seu corpo é instrumentalizado, subjugado, mas todo o ser o é a partir da violação do seu corpo. E tudo isso acobertado por uma cultura do estupro, do silêncio e da omissão de muitos setores da sociedade.

 

Por considerarmos indigno da pessoa humana viver em violência, construímos uma legislação e políticas públicas para enfrentá-la. O desmonte de muitas das estruturas criadas ocorre num processo de pós golpe e do uso da violência como solução de conflitos. Da negação das desigualdades de gênero como marcadoras de vulnerabilidades. Da linguagem violenta e da promoção da divisão social.

 

Falta generosidade quando não se reconhece que a desigualdade de gênero está na raiz da violência contra mulheres e meninas. Falta sinceridade quando se retiram conteúdos curriculares e se ameaça e criminaliza educadoras que problematizam a história e a sociedade. Nos envergonha que o Brasil vá às Nações Unidas para retirar o termo de gênero nos documentos internacionais. Falta respeito quando se desprezam as mulheres que buscam a igualdade em detrimento de modelos de família que oprimem e matam. Falta dignidade quando detentores de cargos públicos bradam contra as mulheres, as feministas, as defensoras de direitos humanos. Ou quando se culpam as próprias meninas pela violência sexual em razão do seu estado de pobreza.

 

O governo Bolsonaro deu fim às políticas para as mulheres, mas não deu fim à violência contra as mulheres, nem dará. Quer acabar com o enfoque de gênero, mas não com as desigualdades. As políticas de hoje são um simulacro, um faz de conta de órgãos comandado por visões retrógradas. Visões que só combinam com a política bélica nas palavras, gestos e atos. Destrói o que se construiu, não só pelos governos, mas pela sociedade, em especial pelos movimentos de mulheres e feministas. Significa que continuamos desafiadas a enfrentar esta cultura de violência e de estupro, que aceita o assédio e a ofensa. Enquanto houver violência, lutaremos pelos direitos humanos das mulheres e das meninas!

Publicado em: Portal Catarinas

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