Sul 21: ‘Nosso foco é encontro com a democracia em 2018″, diz Dilma
Quando começou a subir as escadas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre para um evento em que falaria sobre Mulheres e a Democracia, Dilma Rousseff encontrou uma fila de mulheres de vermelho, com bandeiras da Palestina, do Movimento dos Sem-Terra, da Marcha Mundial de Mulheres. Representantes de movimentos sociais, elas cantavam baixinho, balançando as saias de chita, quase em ritmo de cantiga: “Olê, olê, olá, Dilma, Dilma”. A ex-presidenta, afastada por um processo de impeachment no ano passado, se emocionou. Alguns minutos depois, já no Plenário da Câmara disse: “Toda [essa] receptividade é inesquecível. Todas nós ficamos com lágrimas nos olhos”.
A reunião de mulheres, bandeiras e cânticos – uma “mística”, como chamaram elas – foi a tônica do encontro da primeira mulher a ser presidente do Brasil com ativistas e militantes gaúchas. Só tiveram senha de entrada ao evento da Câmara, organizado pela procuradora da Mulher na Casa, vereadora Sofia Cavedon (PT), mulheres ligadas a movimentos, ONGs e organizações. Dilma disse que falaria para elas.
Ladeada pelas deputadas Manuela D’Ávila (PC do B) e Maria do Rosário (PT), ela discursou sobre o golpe que sofreu do seu vice. “Por que golpe? Pelo menos ganhamos essa guerra da versão. A nossa é a versão da realidade. Houve um golpe parlamentar porque houve impeachment sem crime de responsabilidade”, afirmou ela.“Era necessário dar golpe parlamentar porque por quatro eleições derrotamos o programa neoliberal que queriam implantar no Brasil”.
Sem falar com jornalistas, nem citar o processo de cassação da chapa Dilma-Temer que corre no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), falou apenas de “uma pedra enorme no caminho” de quem a tirou da Presidência: a eleição direta em 2018. “Ela cria toda uma série de grandes impasses políticos. Primeiro porque quando você faz pesquisa não interessa o que A, B, C ou D acha de cada um dos concorrentes, o fato que é inegável é que quem ganha em qualquer pesquisa é Luis Inácio Lula da Silva”, bradou elevando a voz. “Por isso, nosso foco é esse encontro marcado com a democracia em 2018. Nesse país, o encontro não começa em outubro de 2018, ele já começou”.
Durante cerca de uma hora de fala, Dilma andou por assuntos que, segundo ela, seriam parte de duas etapas distintas do golpe. A primeira: “Como eu não tinha conta no exterior, nunca me pagaram em propina, criminalizaram o orçamento. Votaram contra minha permanência na presidência e alegaram conjunto da obra. Essa talvez seja alegação mais escrachada de que foi golpe, porque na democracia só tem um jeito: eleição direta de presidente da República”. E a segunda: “Como eles tinham de superar essa pequena questão dos 54 milhões de votos, a segunda etapa tem sido essas medidas que vem sendo sancionadas”, ironizou citando especialmente a PEC do teto de gastos – já sancionada por Temer, que congela por 20 anos verba de saúde e educação – e afirmando que os governos do PT passavam em R$ 25 bilhões teto, porque sem isso não havia viabilidade para aplicar programas.
A ex-presidenta criticou ainda a reforma da previdência, a lei da terceirização – que está rachando o PMDB no Congresso, a começar por Renan Calheiros (PMDB) – a falta de equipamentos sociais que funcionem como aparelho integrado em todas as áreas e o modelo tributário brasileiro. Dilma, que é economista de formação e foi a primeira mulher a presidir a Fundação de Economia e Estatística do Estado (FEE), indicou como ponto central do problema o fato de ele ser dirigido apenas aos ganhos do trabalho e sem incidência sobre renda, afirmando que essa é a receita neoliberal responsável pela crescente concentração de renda no mundo nos últimos 20 anos.
Ela também defendeu dois programas sociais que se tornaram marca registrada das gestões do PT: o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida. Sobre o primeiro, garantiu que “está centrado em uma tecnologia sofisticada, não é esmola”. Do segundo, lembrou dos cortes feitos pelo governo de Temer, que eliminou do programa famílias de baixa renda. “Estão fazendo o Minha Mansão, Minha Vida. Não tenho nada contra o acesso da classe média a programas de habitação, só que o Estado brasileiro quando der subsídios tem que dar primeiro a quem tem a renda mais baixa”, cutucou.
A parte das mulheres
Antes do começo da fala de Dilma, Manuela disse que estava ali para ouvir sobre “mulheres de verdade que sonham pela emancipação dos trabalhadores e trabalhadoras”. Maria do Rosário também reforçou a questão de gênero, mas lembrando especialmente do fim do mês de março, data do golpe civil-militar que colocou o país em 21 anos de ditadura, contra a qual Dilma lutou como guerrilheira. “A ditadura de hoje quer tirar direitos da reforma da Previdência, da reforma trabalhista. Isso tudo, se é contra trabalhadores e trabalhadoras é, antes de tudo, contra as mulheres”, afirmou a deputada petista.
Dilma fez questão de ressaltar que falaria do fazer político e da política nacional através do recorte de gênero. Mais de uma vez ela afirmou que era assim que via o golpe e que tinha “clareza” de que a imprensa usou a “tipologia do gênero feminino” durante todo o tempo em que esteve no governo. Em um momento, até brincou: “Eu era uma mulher dura no meio de homens meigos, como eles diziam”. Em outras, reclamou de ser tratada como alguém “frágil”.
Ela não fez menção ao desastrado discurso de Temer no dia das mulheres – em que ele disse que mulheres criavam os filhos e avaliavam os preços de supermercado melhor do que ninguém – mas em certos momentos, as citações pareciam passar perto do peemedebista.
“Entendemos que gênero não é questão de identidade sexual, é uma pele especial (…) que recobre as mulheres e faz com que algumas características da nossa vida sejam de anormalidade. [Para nós mulheres], é normal assumir trabalho doméstico, assumir cuidado com membros da família. Essa pele de normalidade esconde atrás dela toda a perda que a sociedade nos impõe ao tratar, por exemplo, o trabalho doméstico como gratuito”, declarou.
A ex-presidenta lembrou ainda das metas traçadas na Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, em Pequim, em 1995, para que a igualdade de gênero e o empoderamento feminino fosse uma realidade no mundo dentro de 20 anos. Dilma disse que na China viu que “a pobreza tinha cara: era negra, feminina e criança” – um perfil das populações mais vulneráveis em direitos.
Como será amanhã
Já no fim de sua fala, a petista tentou traçar uma análise cuidadosa de como pode seguir o quadro político que se desenha no Brasil. Culpou a ação da mídia durante o processo de impeachment, “que teve respaldo em grupos políticos da oligarquia brasileira e daquele pato amarelo”. “Mas sabe o que é não pagar o pato? É não pagar imposto. É muito grave, porque uma das características do neoliberalismo é fazer e operar na sociedade tendo em vista interesses financeiros”. Uma agenda derrotada durante quatro eleições nas urnas, disse.
A atenção maior para o momento, porém, onde mais se deveria tomar cuidado, está na construção de um discurso já conhecido. “Temos de ter clareza, muitas pessoas operam pra dizer que política é coisa suja, não deve ser considerada, não leva a lugar nenhum e abre-se um campo para salvadores da pátria, para propostas simplórias que visam transformar símbolos em inimigos, que não interessam a população, mas a um grupelho”, atentou.
Numa noite de costura entre gênero e democracia, o passado e o futuro já do presente, Dilma lembrou que a última vez em que esteve na Câmara de Porto Alegre foi para prestar homenagem à amiga Lícia Peres, feminista, ativista pela anistia, que faleceu no último dia 16 em decorrência de um câncer. Pela memória dela e a proximidade com o dia 31 de março, lembrou de sua infância e adolescência sob ditadura. “Vivi em circunstâncias mais diversas, cheguei à adolescência na transição da democracia para a ditadura e sei perfeitamente o valor da democracia e o quanto nós ganhamos quando ela existe de forma plena”.
Publicado originalmente em: Sul 21.