Quando o abuso é o cotidiano
Apenas as mulheres conhecem o constrangimento do assédio em meios de transporte, das cantadas desrespeitosas que nos acompanham desde a mais tenra idade, ou a sensação de passar por uma rua deserta e temer quando um desconhecido se aproxima. Mas só a vítima do estupro sabe o que significa ter sua intimidade violada, sua identidade vilipendiada.
Imaginem o que significa para uma menina sofrer esse crime atroz, praticado por uma das pessoas a quem lhe foi ensinado que ela deveria depositar seu mais alto grau de confiança? Uma adolescente de 13 anos, aqui do Rio Grande do Sul, passou por isso recentemente. E este não foi o único sofrimento ao qual foi submetida.
Durante a audiência em que o pai abusador buscava reduzir sua pena, o promotor humilhou a vítima, imputando-lhe a culpa pela violência sofrida. O absurdo da fala de quem deveria defender o interesse público e proteger a vítima nos choca, mas é preciso que saibamos que a revitimização e a violência institucional são mais cotidianas do que supomos.
Vemos todos os dias que a ausência de procedimento padrão para o acolhimento das vítimas as deixa à mercê de operadores de sistema de justiça que por vezes não possuem os requisitos necessários para a realização da escuta. Estas são ainda obrigadas a repetir suas histórias e reviver o trauma diversas vezes. Diante desta dura realidade, propusemos junto à Frente Parlamentar dos Direitos da Criança e do Adolescente, Unicef e Childhood, o Projeto de Lei 3.792/2015, que detalha o procedimento da escuta qualificada e do depoimento especial, visando garantir a segurança e a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Espelhando-se nas melhores práticas em curso, o PL determina uma mudança total nos procedimentos, dos quais destacamos a gravação do depoimento, que permitirá sua utilização posterior, evitando sua contínua repetição por parte da vítima e o contato com o agressor. Assim, afastaremos ainda a possibilidade de que alterações no conteúdo, fruto da condição peculiar de crianças e adolescentes, mas também da pressão por parte do acusado e seus emissários, sejam utilizadas para livrar os culpados, tal como se tentou fazer no caso que citamos.
Quando o sistema não funciona, quem ganha é o agressor, e a violência se perpetua. O PL 3.792/2015 é uma contribuição no sentido da construção de instituições que verdadeiramente protejam as vítimas, mas estamos conscientes de que se trata apenas de um passo, que precisaremos incidir em diversas áreas para que asseguremos uma cultura ética e humanista que impeça que casos como esse se repitam.
Publicado em Zero Hora