Para além da resistência – Por Denise Pessôa e Maria do Rosário
O PT e a esquerda devem compreender que estamos num marco de mudanças culturais e geracionais de uma velocidade incrível e a ruptura pode ser mais profunda que a assistida nos anos 60 e 70
O Brasil está em turbulência. Desde que um conjunto de interesses políticos e econômicos se uniu para derrubar a Democracia e retirar a esquerda do Governo, as dificuldades se apresentam em todas as áreas. Literalmente, jogaram tanto contra o país que agora não conseguem reerguê-lo. A continuidade do Golpe com Bolsonaro vem confirmando a tragédia social, que será ampliada caso a Reforma da Previdência seja aprovada. Frente a este contexto, o que a esquerda e o PT devem fazer para além da resistência?
Evidentemente, resistir é um ato de coragem, generoso e que tem produzido efeitos importantes. Não fosse isso, a destruição de conquistas e direitos teria sido muito maior. Mas a pergunta acima é crucial e habita a mente de ativistas país afora. Complexa que é, não pode ser respondida brevemente, mas deve ser alvo de reflexão contínua. E é a esta reflexão que este texto se propõe.
A população já percebeu, e sente na carne, que a política do “Fora PT” é um desastre não só por conta de sua perversidade, mas também porque não havia acordo sobre o que fazer após afastar Dilma. Executaram o Golpe e não conseguem entregar um único avanço à população, pois eles não tem projeto de país para além da retirada acelerada de direitos sociais e do rápido processo de transferências das riquezas do país ao grande capital e ao setor financeiro. Ou seja, devemos saber exatamente o que fazer quando novas oportunidades se abrirem, quando um novo ciclo histórico substituir o conservador, que não se sustentará por muito tempo face as barbáries que vem cometendo.
Mesmo que seja difícil projetar futuro em um momento tão delicado, é possível e necessário aprofundar a compreensão do processo que nos trouxe até aqui para, em um novo projeto, conseguir emergir uma cultura política de cidadania democrática, ultrapassando o marco da realização de políticas públicas compostas como direitos, mas sem a participação das pessoas a quem se dirigem, portanto sem elevação da consciência política e com a manutenção das estruturas políticas tradicionais intocáveis que, recentemente, revelaram a incapacidade de enfrentamento ao Golpe. Assim, é de se valorizar profundamente as conquistas de nosso campo no passado, seja no contexto democrático, do movimento social ou de nossos governos, sem esquecer que apenas celebrar o “já feito” é absolutamente insuficiente para construir pontes com as aspirações presentes e futuras da sociedade. A maioria da população brasileira reconhece nossos acertos, mas espera novos posicionamentos de esperança, de ações de novo tipo.
O primeiro leque de medidas a planejar é um programa de reversão das reformas de Estado promovidas por Temer e Bolsonaro, seja na revogação da Emenda Constitucional 95 que congelou os investimentos sociais por 20 anos, passando pela revogação da Reforma Trabalhista e a anulação de outras possíveis alterações em direitos trabalhistas que estão por vir (uma nefasta aprovação da “carteira de trabalho verde e amarela”, por exemplo) até a recuperação de uma lógica que valorize o patrimônio e as riquezas nacionais em vez de submetê-los a interesses de outras grandes potências, como vemos hoje. Mais, em uma sociedade diversa como a nossa, será preciso recuperar a ideia de que a educação livre e democrática é essencial para o desenvolvimento da Nação, além de afirmar os direitos individuais e coletivos sobre os interesses do mercado.
Falando em futuro, há de se abrir os olhos para as profundas transformações que os campos da tecnologia da informação e da biotecnologia estão produzindo em conjunto. Diversos estudos têm apontado transformações jamais vistas no mercado de trabalho nas próximas décadas. Muitos acham que o termo “uberização” da economia serve para rotular uma relação precária de trabalho, sem direitos garantidos aos trabalhadores e trabalhadoras, mas o termo descreve algo muito além. Através de Inteligência Artificial, em pouquíssimos anos a empresa deverá substituir “seus” motoristas por carros autônomos.
Quem acha que essa é uma realidade distante, desde 2016 a empresa já conta com a tecnologia para veículos pesados, de carga, absolutamente independentes do controle humano. Na cidade de Pittsburgh, no estado da Pensilvânia (EUA), os veículos já conduzem passageiros sem tripulação. Portanto, quem garantirá que ainda existirão empregos de motoristas nos próximos anos? Quem acredita que as transformações se restringem ao serviço de transporte comete engano crucial. Haverá o esvaziamento da necessidade de um conjunto de profissões, jogando bilhões de pessoas à margem do sistema, sem qualquer relevância às elites econômicas. Diante de transformações tão radicais, urge atualizar nossa compreensão e formulação de temas desafiadores como este. Até quando fecharemos nossos olhos?
Finalmente, é preciso interiorizar cada vez mais que a lógica de engajamento e mobilização social foi significativamente alterada. Estamos a frente de cidadanias empoderadas. De uma cidadania muito menos ligada a classes sociais e muito mais a questões de identidade, território, cultura. E o mais complexo: não há um princípio de unificação neste processo, está se forjando uma cidadania sem base única, com muitas demandas distintas. Diferente da “geração fundacional” do PT e do movimento sindical da redemocratização, são ativistas que nasceram na democracia e apenas agora tomaram contato com um ambiente antidemocrático. Neste processo não há uma centralidade na identificação de inimigos, algo permanente, estrutural, como o rentismo e todo o sistema econômico concentrador. O que existem são adversários fugazes. Na ausência de projeto geral, os adversários são de curto prazo. Esses movimentos giram na organização dos eventos de protestos, não de processos políticos, que geram acúmulos. Do estilo “temos que atuar agora”, caracterizado pela ausência do médio e largo prazo, no imediatismo e, por vezes, com ausência de utopia.
Para compreender os movimentos sociais atuais temos que lhes perceber como um iceberg. A parte visível são os protestos, os repúdios, enfim, os escrachos, mas tem uma dinâmica interna que fica subsumida. São movimentos de transbordamento, que sempre querem ampliar suas pautas, mas que quando chegam no ápice em seu diálogo com a sociedade, na rua, acabam se defrontando com questões mais complexas e sua indignação não se transforma em um projeto coletivo. É um processo de descentralização dos sujeitos onde não há um movimento dos trabalhadores como o central. Aliás, os movimentos que não querem um rótulo fixo. Se coordenam muito mais por laços afetivos e sociais, afinidades. Rompem com o tradicional, a identificação de um grupo social, de um partido, de uma central sindical. A emergência de ação militante é plural, descentralizada, com várias iniciativas e referências. São movimentos até com grande dificuldade de se apresentar, pois são móveis e com fronteiras menos rígidas de organização.
Esta é uma geração onde a identidade se forma na própria luta, nem antes, nem depois. Não tem aquela história para o jovem atual de que “não me sinto preparado”, sua concepção se forja ali, diretamente no movimento. Não existe mais um grupo produtor e receptor de política, a formulação é no próprio grupo, na vida real, em tempo real, sem necessária mediação do partido, da direção, da liderança. O PT e a esquerda devem compreender que estamos num marco de mudanças culturais e geracionais de uma velocidade incrível e a ruptura pode ser mais profunda que a assistida nos anos 60 e 70.
Como é possível perceber, as respostas a estes novos questionamentos são complexas. Talvez o momento seja mais propício para perguntas e não afirmações. Vamos, coletivamente, a elas?
*Denise Pessôa (PT) é vereadora de Caxias do Sul (RS)
** Maria do Rosário é deputada federal pelo PT do RS
Publicado na Revista Fórum