Olhar de Mãe
Como a maternidade inspira, diariamente, a atuação de nove mulheres na política nacional
Maior responsabilidade. Mais empatia. Desejo de mudança.
Essas são características que, certamente, gostaríamos de ver em todo o quadro de governantes e parlamentares do país. São, também, características que mulheres brasileiras envolvidas na política com quem a reportagem de Ecoa conversou disseram ter se aguçado ao longo de suas experiências de maternidade.
O Brasil ocupa o 134º lugar no ranking de representatividade feminina no parlamento, e o 148º lugar no mesma lista em relação ao governo. Os dados são do Mapa Mulheres na Política 2019, um relatório da Organização das Nações Unidas e da União Interparlamentar.
Em uma nação em que 52% de seu povo são mulheres, estamos longe do ideal, mas o número de candidatas e eleitas vem aumentando. Elas são solteiras, casadas, divorciadas; brancas, negras, asiáticas, indígenas; a favor da dita família “tradicional” ou abertas a novas estruturas familiares que compõem um Brasil tão diverso quanto desigual. Mas o que dizer das mulheres que praticam o ativismo político e, à parte um sistema que ainda pouco favorece equidade de participação, também são mães?
A reportagem ouviu nove mulheres que exercem atividade política: ex-ministras, ex-parlamentares, deputadas e senadoras. Com origens e experiências de vida e atuação bastante diversas entre si, elas têm em comum o entendimento do quanto a maternidade impactou a visão delas de mundo e de fazer política.
De mais empatia às dores do outro a diferentes graus ou percepções de “culpa” pela atuação profissional em meio à maternidade, as políticas que têm filhos contam as experiências que mais as marcaram na condição de mães e mandatárias. Neste Dia das Mães, elas querem trazer outro recado: é possível mudar.
Sônia Guajajara
Líder indígena, ex-candidata a vice-presidente
Principal liderança feminina indígena do país, Sônia Guajajara, 46, é a coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), grupo que reúne mais de 305 povos indígenas do país. Em 2018, teve a imagem projetada em uma campanha presidencial ao disputar como vice na chapa de Guilherme Boulos, ambos pelo PSOL.
Mãe de três filhos de 20, 18 e 14 anos, Sônia começou o ativismo político ainda jovem, dentro do movimento indigenista. Os filhos vieram e cresceram paralelamente ao processo de estabelecimento de sua imagem como liderança. “Minha atividade começou a ficar mais intensa a partir de 2001; meu filho tinha dois anos e eu o botava na tipoia e ia aos lugares. Jamais deixei de viajar ou trabalhar por causa de filho. Na verdade, tê-los comigo em reuniões me deixava muito mais segura”, lembra.
Sônia perdeu a primeira filha para uma hepatite viral quando faltavam 15 dias para a criança completar dois anos. Hoje, ela estaria com 24 anos. Ficaram Luiz Augusto Mahkay, Yaponã e Y’hara. “Quando meu segundo filho chegou, eu fazia faculdade [Letras, em Imperatriz, Maranhão], tinha aula em período integral. Ele chegou em uma quinta-feira, e, na segunda seguinte, eu já estava na aula”, relata.
A terceira filha, Y’hara, veio em 2005. A ligação, conta a mãe, foi ainda mais intensa que com os dois meninos. “Me apeguei muito a ela, porque veio uma lembrança muito forte da minha primeira menina, Itaniara. Nasceu prematura de oito meses, ficou 13 dias na UTI e era dada como uma criança que não teria uma vida normal pelos médicos. ‘Minha filha voltou e vai morrer de novo? De jeito nenhum’, pensei. A tirei do hospital por conta, assinando um termo, e cuidei dela do meu jeito. Ela ficou boa e é uma jovem absolutamente normal, inteligente…”
A ativista relata que levou Y’hara a todo tipo de agenda dela como liderança do movimento indígena: ocupações, acampamentos, viagens – de seis meses com a mãe em Roraima, na Terra Indígena Raposa do Sol, a oito meses de ocupação da ferrovia da Vale em Paraupebas (PA). “Sempre tive os três muito próximos de mim porque sempre quis que meus filhos tivessem essa relação direta com sua raiz e sua cultura.”
Para a líder indígena e politica ainda filiada ao PSOL, os filhos impactaram seu ativismo político à medida em que, os tendo na vida, define, “a gente olha muito mais longe”. “Você amplia a sua visão porque não é mais só você.”
Indagada se enfrentou machismo dentro da própria cultura por estar sempre em atividades que não explicitamente domésticas – ainda que em defesa de seu povo —, Sônia não titubeia: “Sempre fui uma mãe muito fora de casa, mas muito mais presente que muitos pais que estão dentro de casa, certo? O machismo é mais uma herança colonial, e chegou forte em todas as culturas. Desconstruí-lo também cabe a nós, mulheres indígenas.”
Você se coloca no lugar do outro e reforça muito esse sentimento de que se tem que lutar hoje não só por você, mas para garantir o futuro dos seus filhos. É algo que abre mais a sua visão e a sua relação com o mundo
Marta Suplicy
Ex-senadora, ex-ministra, ex-prefeita
Agente política em diversas esferas de poder – de prefeita da maior cidade da América Latina a ministra, senadora e candidata ao governo paulista -, mãe de três filhos e avó de seis netos, Marta Suplicy fala a Ecoa com uma observação direta logo no início desta entrevista sobre maternidade de mulheres no campo político: a experiência dela não é só a de mãe política, como também de esposa de político por mais de três décadas – ela e o ex-senador e hoje vereador Eduardo Suplicy (PT) se divorciaram em 2001 após 33 anos de união.
“Ocupei espaços na política e também fui mulher de político por muito tempo, experiência talvez até mais complexa porque, nessa condição, a gente fica muito sozinha e muitas das responsabilidades paternas e maternas recaem sobre a mulher – desde levar o filho ao médico a ajudá-lo com a lição de casa.”
Aos 75 anos, sem mandato eletivo desde o final de 2018, quando deixou o Senado, e recém-filiada ao Solidariedade, a psicanalista aponta diferenças geracionais – especialmente entre as mulheres que ocuparam espaços na política há duas ou três décadas, e as de agora – que, em sua avaliação, ajudam a explicar como a maternidade impacta mais ou menos a atividade feminina na política.
“Tive uma vida muito intensa, porque acabei meus estudos universitários e segui uma profissão; quem me ajudou nesse processo foi minha mãe, que ficava com meus filhos quando eu precisava. Isso é algo muito ligado ao passado: eram avós, bisavós e tataravós que cuidavam das crianças, de idosos e doentes, em casa – acabamos por pagar um preço altíssimo, que foi estarmos alijadas do poder, por outro lado”, diz. “A prática política é muito árdua, em campanhas ou no exercício das funções; já é pesada para o homem, mas, para a mulher, tem o dobro do peso.”
O sentimento oriundo desse peso é bem ‘democrático’, diz Marta. “É a culpa, questão que demora muito a ser equacionada pela mulher, não importa se esta é pobre, rica, política ou não… A mãe tem introjetado até hoje que o filho é responsabilidade dela – e mesmo com a juventude mais moderna, que divide muito mais o trabalho doméstico e o cuidado com as crianças, isso ocorre.”
Ser capaz de lidar de uma forma razoável com essa culpa é um primeiro passo importante às mães que queiram se lançar na política, analisa Marta. “A mãe precisa ter a capacidade de se organizar e de buscar um equilíbrio: ter um tempo para si, por direito. Assim como a criança é sujeita de direitos, a mãe também é.”
A ex-senadora mencionou um tipo de episódio que costumava ver, em Brasília, em seus anos mais recentes no Congresso. Na ânsia de lidar melhor com a culpa de estarem longe dos filhos pequenos, parlamentares (a maioria é de fora do DF) acabavam levando-nos à capital federal para passar dias, por vezes, semanas, com elas. “A ida dos maridos junto, nesses momentos, costumava ajudar muito. Mas já vi parlamentares muito tensas porque o filho tinha ido ficar durante a semana, e a agenda de trabalho delas no parlamento e fora dele era exaustiva. Resultado: mais culpa.”
Se a capacidade de reservar um tempo para si “é importante para manter a sanidade”, Marta avalia também que de situações de crise como a atual pandemia podem emergir ensinamentos preciosos para o futuro, espera-se, próximo. “Tanto para a política quanto para a vida em qualquer outra profissão, nós, mulheres, podemos aproveitar essa brecha para angariar aquilo que nos favoreça. Enquanto nossa cultura for patriarcal, e não só no Brasil, isso vai demorar a transformar”, defende.
O futuro todo vai ser muito modificado por essas situações que estamos vivendo, e acredito que nós, mulheres, podemos aproveitar essa brecha
Kátia Abreu
Senadora (PDT-TO), ex-ministra
Em seu segundo mandato no Senado Federal, a senadora goiana Kátia Abreu (PDT), 58, gosta de dizer que não teve a mesma sorte que o filho Irajá Abreu (PSD), senador eleito em 2018 pelo mesmo Estado que a mãe, ao se lançar na vida política. A parlamentar é um dos principais nomes do agronegócio no Congresso Nacional, aonde chegou mais pela atuação no próprio setor do que por apadrinhamento ou herança de um sobrenome com apelo eleitoral, caso de Irajá, primogênito de três filhos da senadora.
Primeira ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do país, no governo da amiga Dilma Rousseff (PT), ela conta que teve de abrir mão da carreira que havia escolhido, como psicóloga, para assumir o papel de mãe e pecuarista após a morte do primeiro marido, em 1987, em um acidente aéreo. Tinha 25 anos e estava grávida da filha mais nova, Iana, hoje com 32 anos, quando se mudou para o Norte de Goiás, hoje Tocantins, para administrar a propriedade do marido.
“Quando fique viúva é que comecei a virar chefe de família, cuidando não mais só das pessoas, mas dos negócios. Aprendi tudo o que pude e, seis anos depois, me elegi presidente do sindicato de Gurupi (TO), a primeira mulher presidente de um sindicato rural no Brasil”, diz. Os filhos pequenos, conta, “carregava para onde ia”.
Presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) por três mandatos e ex-deputada federal, a agora senadora avalia que, não fosse pela tragédia na vida pessoal, dificilmente teria mudado o próprio rumo profissional tão drasticamente – não havia completado o curso de psicologia, quando o marido morreu, e era dona de casa. “Entrei para a vida política por uma tragédia na vida pessoal; se eu tivesse marido [ela ficou 30 anos sem se casar, após ficar viúva], dificilmente teria chegado aonde cheguei. Não é que homem atrapalhe, mas é que, para nós mulheres, é muito mais difícil conquistar espaços na política, ainda mais que a vida de casado imponha certas restrições”, define.
Como a maternidade impactou a atuação política? A senadora reconhece “nunca” ter sido uma ativista, tampouco adepta da ação direta no agronegócio, até que ficasse viúva. Agora com cadeira no parlamento, e no cargo mais longevo dele – o mandato de senador é de até oito anos —, afirma militar para que haja “equilíbrio de gênero” e constata: ser mãe é a oferta “de uma sensibilidade que homens nunca tiveram”.
“O sentimento feminino humanista é diferenciado, é um olhar social natural. Homens são mais pragmáticos, mais ‘preto no branco’, por natureza. Do ponto de vista ideológico, me considero uma liberal humanista: eu ainda sou a favor da livre iniciativa, da propriedade privada e segurança jurídica, mas reconheço meu lado humanista e percebo quando, ao contrário dos colegas homens, vejo mulheres tendo de se sobrepor no tom da voz, ou falando mais rapidamente, porque senadores não têm, muitas vezes, paciência para nos ouvir falar e nos interrompem”, aponta.
A minoria feminina na Casa e a atribuição social que muitas vezes ainda se dá à mulher em relação ao cuidado com a família, destaca a senadora, acabam também desarticulando a bancada delas no Senado em torno de pautas com viés de gênero. “Somos muito poucas, e, cada uma, resolvendo também seus próprios problemas. Mas, sendo justa: em todos os benefícios que temos conquistado no Congresso, com foco no público feminino, tivemos de contar com os homens”, pondera.
Uma exceção nesse sentimento de gratidão aos colegas senadores parece ter sido aberta ao ex-senador José Serra (PSDB-SP): em dezembro de 2015, durante confraternização no Senado, ao ouvir dele se de fato era “namoradeira”, ela respondeu, irritada, com uma taça de vinho sobre o tucano. “As redes sociais enlouqueceram”, diz, hoje aos risos. “Foi algo gratuito com alguém com quem o então senador não tinha a menor liberdade para tal.”
Além dos três filhos, a senadora tem quatro netos que, ao contrário das palmadas e da “disciplina meio militar para corrigi-los”, são mimados sempre que possível. “Sucumbi ao chavão do ‘avó é mãe em dobro’, reconheço.”
Para eu vencer, tive que trabalhar cinco vezes mais que um político homem: era viúva e com três filhos
Marina Silva
Ex-senadora, ex-ministra, ex-candidata à presidência
Marina Silva, 62, apareceu na mídia nos anos mais recentes mais projetada por disputas políticas em que chegou a figurar como uma terceira via do que, necessariamente, por uma de suas principais bandeiras na vida: a causa ambiental. Conversar com a ex-senadora pelo Acre, ex-ministra do governo Lula e mãe de quatro filhos neste 2020 de intensa volatilidade nas esferas política e ideológica do Brasil, no entanto, parece resgatar um perfil de ativismo muito distante da militância virtual.
Hoje no Rede Sustentabilidade, partido que fundou, Marina chegou à política “tradicional” graças a esse ativismo – desde a criação do PT e da CUT (Central Única dos Trabalhadores), no começo dos anos 1980, mas já da luta ambiental ao lado do líder dos seringueiros Chico Mendes, assassinado em 1988 por um tiro de escopeta em Xapuri (AC).
A Ecoa, a ex-ministra destaca, porém, que o primeiro filho veio antes, aos 22 anos, quando se descobria ativista no movimento estudantil – Marina cursava história. De lá, não demorou para chegar ao primeiro mandato – a eleição em 1988, como vereadora em Rio Branco, pelo PT. “Era preciso atuar em tantas frentes, eram tantas as carências e necessidades, e também a descoberta do ativismo. E eu ainda estava em um grupo de teatro amador”, conta ela.
Para a ex-senadora e ex-ministra, ainda hoje a maternidade e o neto de um ano recém-completado impactam sua visão de mundo dentro da atuação política. Aliás, garante, isso ocorre desde o primeiro filho. Ela é mãe de Shalom, 38, Danilo, 37, Moara, 30, e Mayara, 27. O neto Matheus, de um ano, mora a um quarteirão da avó política, em Brasília.
“Tive uma experiência muito forte na graduação. Eu estava no segundo ano quando fiquei grávida do Danilo. E como o Acre é muito quente, lembro que eu fui ao banheiro me refrescar, eu estava de sete para oito meses de gestação, e algumas amigas entraram ali, mas não me viram. As escutei conjecturando que eu não deveria gostar da família, já que me envolvia com tanta coisa [como ativista]. Eu já esta com uma sensibilidade bastante aguçada; era frágil [no passado, teve malária]; tive que botar a mão na boca para chorar, pois não queria que elas me ouvissem. Fiquei muito angustiada, não consegui nem voltar para aula. Como que lutar por um mundo mais justo, com floresta viva e justiça social, podia ser interpretado como falta de amor pelos meus filhos e minha família?”, questiona.
Dos tempos de senadora, se lembra de dois episódios quase anedóticos, mas que a marcaram: em um, em uma sessão esvaziada do plenário, em uma sexta à noite, a filha, então com três para quatro anos, “cismou que tinha que sentar na cadeira comigo. Ela se sentou, o secretário da mesa pediu para retirar a menina dali, porque era uma ‘pessoa estranha ao parlamento’, mas não tinha que a fizesse sair dali. Veio um segurança retirar, imagina a estupidez? Eduardo Suplicy [PT-SP] precisou fazer um aparte”, se recorda.
No outro episódio, a filha perambulava pelos corredores do Senado, perto da mãe, quando uma repórter do jornal O Globo perguntou à criança – então com 5 para 6 anos -se ela queria ser política, como a mãe. “Deus me livre, é trabalho demais”, respondeu a garota, em um lampejo. “Imagina: ela queria ser professora. E é. E trabalha demais”, ri Marina.
É preciso que a gente crie condições para que a maternidade não signifique reduzir possibilidades, mas favoreça a ampliação delas
Gleisi Hoffmann
Deputada federal (PT-PR), ex-senadora, ex-ministra
Eleita deputada federal em 2018, a ex-ministra da Casa Civil e ex-senadora pelo Paraná Gleisi Hoffmann se tornou mãe em 2001, quando o político da casa era o então marido – também ex-ministro em gestão do PT – Paulo Bernardo. É a atual presidente nacional de seu partido.
Com 36 anos, sem mandato e em Londrina, no Norte do Paraná, para onde o casal se mudaria para trabalhar em uma administração municipal comandada pelo PT, deu à luz João, hoje com 19 anos. A segunda filha, Gabriela, 14, chegou em um momento inusitado: Gleisi e Bernardo haviam pedido à Justiça a adoção de um bebê, mas a sugestão para conhecer a criança chegaria no meio da campanha dela para o Senado em 2006 – na qual, embora embalada por votação expressiva (cerca de 45%), acabou derrotada pelo candidato à reeleição, o ex-governador Alvaro Dias (hoje no Podemos, à época, no PSDB).
“Fui avisada que a bebê que eu havia pedido para adotar poderia ser conhecida; fui lá e claro que a levei. A sorte é que minha mãe, uma amiga e minha irmã me ajudaram demais, porque eu tinha uma agenda de campanha para cumprir depois de ficar uns dias com a bebê. Lembro bem que o João, então com 5 anos, me disse que queria ajudar a cuidar da irmã”, relata.
Os filhos se mudaram para Brasília quando chefiou a Casa Civil, no governo Dilma. Criaram laços na capital federal e se estabeleceram por lá.
“O ser mãe me demandava uma organização de tempo principalmente quando eles eram menores e era preciso dar mais atenção – embora nunca foi suficiente como deveria e como eu gostaria. A militância política, mesmo em cargos de Executivo ou Legislativo, não tem horário, regras de horário, e isso faz com que, muitas vezes, a dedicação a isso seja quase que exclusiva, mesmo aos finais de semana”, explica. “Sei que eles [os filhos] se ressentem muito da minha presença mais efetiva, mas eles nasceram nesse mundo, de pais militando, e não conhecem outro”, completa.
Mesmo que a atividade política demande uma dedicação em período quase integral, a deputada pontua diferenças em como homens e mulheres parlamentares lidam com a questão, pela percepção dela. “Homens terceirizam muito as relações familiares e o cuidado com a casa e contam, grande parte das vezes, com a retaguarda de mulheres que não participam da política para que eles possam fazer política. Como o Paulo fazia militância e eu também, sempre me ajudou bastante – conversávamos, dividíamos e tentávamos ajustar.”
Indagada sobre como a rotina do parlamento lida com a figura da mãe mandatária, a petista considera haver uma reprodução de padrões sociais que considera a figura feminina mais responsável pela criação dos filhos e o cuidado com a casa que os homens. “É um traço de uma sociedade machista e patriarcal, mas acredito que aos poucos temos falado mais sobre isso e tentado mudar.”
A maternidade me deixou muito mais sensível não só ao fator de gênero, como para o olhar a outras crianças e adolescentes que não puderam ter as mesmas oportunidades que os meus filhos, bem como a mães desprovidas de justiça social
Manuela D’Ávila
Ex-deputada federal e estadual, ex-candidata a vice-presidente
Candidata a presidente pelo PCdoB, em um primeiro momento, e, posteriormente, como vice na chapa de Fernando Haddad (PT), em 2018, a jornalista e ex-deputada gaúcha Manuela D’Ávila, 38, engravidou da primeira e única filha, Laura, 4, em um momento de intensa turbulência política no país. O ano era 2015, quando pululavam pelo Brasil manifestações organizadas ou fomentadas por setores do empresariado e da direita política contra a então presidente Dilma Rousseff, que sofreria o impeachment no ano seguinte.
“Fui gestante em um ano de muita disputa e início dos movimentos antidemocráticos – um momento de muita mobilização social e também de violência política, do ponto de vista do parlamento. Fui alvo de muitas fake news, com invenções de eu que teria viajado para fazer enxoval da minha filha, por exemplo. Foi quando eu me dei conta da importância que isso estava tomando na política brasileira”, analisa.
Nem no período de licença-maternidade, conta Manuela, houve sossego: “Fui vista várias vezes como alguém que não queria me engajar porque estava em casa. Depois comecei a participar de algumas coisas com a Laura recém-nascida e também não era bem acolhida. Se eu estava, era ruim; se eu não estava, era ruim também. As pessoas têm baixíssima compreensão sobre isso.”
A deputada teve licença de quatro meses, mas alimentou a filha exclusivamente de leite materno até o sexto mês. Em função disso, o marido, o músico Duca Leindecker, 50, levava a criança à assembleia para que as mamadas não fossem interrompidas. “As pessoas diziam que ali não era lugar de criança”, afirma.
Antes da tumultuada eleição presidencial de 2018, Manuela optou já em 2016 por não disputar a Prefeitura de Porto Alegre, embora liderasse as intenções de voto, porque não queria expor Laura, então com menos de um ano, ao jogo da campanha. Em 2018, com Laura sendo amamentada e com um clima de animosidade contra a esquerda política substancialmente mais pesado, precisou correr o país como candidata a presidente por seu partido, e, depois, a vice na chapa de Haddad.
“Quando o PCdoB decidiu que eu seria sua candidata, Laura tinha dois anos. As pessoas queriam que eu fizesse uma escolha: ou ser candidata ou ser mãe. E essa foi a principal conversa com o meu partido: que eu poderia sair à Presidência, mas conciliando o exercício da maternidade, que eu julgava adequado para mim, com aquela candidatura”, declara.
Se no início o acolhimento à figura da candidata com uma filha pequena era ainda tímido, no transcorrer, garante, o quadro foi se transformando. “Deputadas, políticas mulheres levavam brinquedos, eleitoras levavam lanches… Em Pernambuco, uma pessoa se deslocou para levar massinha de modelar para a Laura brincar; em Belém, pessoas a recebiam com frutas. Foi uma transformação muito potente”, conta. Os casos foram narrados também o livro “Revolução Laura: reflexões sobre maternidade & resistência”, que Manuela lançou ano passado.
Se a maternidade mudou a visão de mundo? “Se eu entrasse em uma mesa de debate noturno, dizia que tinha que sair em duas horas para amamentar – e eu saía, e saía falando sobre isso. Então, passei a ter uma militância também que ressaltou mais esses marcadores excludentes. E isso para mim é importante, porque a gente precisa entender que as crianças existem”, diz ela.
Para a ex-deputada, agora também é importante militar para que o novo exercício de poder não seja constituído por “mulheres reproduzindo um padrão de paternidade nefasta, de terceirizar absolutamente os cuidados”, acredita.
Luto pelo melhor para ela [a filha, Laura], mas luto para que mulheres possam dormir sabendo que a filha tem casa, comida
Benedita da Silva
Deputada federal (PT-RJ), ex-senadora, ex-governadora
Hoje deputada federal pelo PT do Rio, a ex-senadora, ex-governadora, ex-vereadora e ex-deputada federal constituinte Benedita da Silva, 78, é mãe de dois filhos, madrasta de outros dois e avó e bisavó de oito. Começou cedo no ativismo político, nos anos 1960 e 1970, como moradora da comunidade Chapéu Mangueira, no Leme (zona sul carioca), muito antes de ajudar a fundar o partido, no começo da década de 1980.
Fazia política na associação de moradores da comunidade, onde as reuniões, em geral, eram à noite. Durante o dia, depois dos anos trabalhados como empregada doméstica, era servente em uma escola pública no que, hoje, ela classifica como “um trabalho absolutamente louco: eu tinha 23 salas de aula para limpar em 45 minutos, para dar tempo de entrarem as próximas turmas”.
A rotina como mãe e ativista, no entanto, não parecia ser tão mais amena: “Eu comecei a fazer política já como mãe. Era uma vida muito dura. Eu tinha que trabalhar e deixar em casa os dois filhos. Chegava exausta, tinha que estudar e fazer política na associação da comunidade, no departamento das mulheres. Mas foi importante porque dali que veio a necessidade de termos representação em outros setores”.
Eleita vereadora em 1982, foi o único nome do PT, sigla então recém-criada, na Câmara do Rio. Sem bancada, sem um partido tradicional por trás, era também a única negra – e da favela, pontua – naquele ambiente. “Não tinha outras como eu, nem uma bancada com quem eu pudesse compartilhar e dividir. Foi uma dureza grande, mas o aprendizado que vinha da escola da vida, na infância e na juventude, foi fundamental.”
O que a maternidade impacta no olhar da agente política? “Ela aumenta a nossa responsabilidade e a vontade de querer mudar as coisas para que ninguém passe pelos momentos difíceis que, no meu caso e dos meus filhos, passamos.”
Mãe de Pedro Paulo da Silva e Nilcea da Silva, Benedita é madrasta dos atores Camila Pitanga e Rocco Pitanga, filhos do marido, o também ator Antonio Pitanga. De filhos e enteados, tem ainda cinco netos e três bisnetos. “A mulher também vai desenvolvendo essa prática de ‘cozinhar pelo telefone’ na atividade política”, comenta, ao se referir às dicas que repassa à prole desde Brasília. “Não falo que as responsabilidades só crescem?”
Hoje muita coisa mudou — e porque nossa presença, de mulheres e mães, muda a política. Mas esse querer mudar e transformar mais vem muito da nossa experiência em casa e fora dela
Maria do Rosário
Deputada federal (PT-RS), ex-ministra
Deputada federal pelo PT do Rio Grande do Sul, a gaúcha Maria do Rosário, 53, era deputada estadual quando teve a filha, Laura, hoje com 19 anos. A jovem cresceu vendo a mãe cumprir uma sequência de mandatos parlamentares – está no quinto consecutivo, na Câmara Federal, e foi ministra da Secretaria de Direitos Humanos no primeiro governo de Dilma Rousseff (2011-2014).
Alvo de políticos da direita pelo menos desde o ataque sexista do então deputado Jair Bolsonaro, em 2014 – quando associou violência sexual à aparência da deputada -, e mesmo de mulheres que eram da base do agora presidente da República -caso, ano passado, da colega de plenário Joice Hasselmann (PSL-SP) —, Maria do Rosário conta que a estrutura do poder em Brasília ainda se mostra refratária à figura da mulher independentemente de ela ser mãe.
“O mais complexo para mim, no exercício da maternidade, foi Brasília. Primeiro, porque a gente acaba estabelecendo em família uma rotina de idas e vindas, cheia de alterações, e isso impacta não apenas nossa atuação pública, como nos cria angústias. Segundo, porque o preconceito com a mãe, que acontece em geral no mercado de trabalho, também se dá no serviço público: é diferente o acesso aos postos de chefia”, afirma.
“Na vida política parlamentar, a mulher, sobretudo as mães, raramente assumem lideranças, presidências de omissão, participação na mesa diretora – tanto o parlamento é extremamente machista, quanto é difícil se ultrapassarem as barreiras dentro dos partidos”, considera. A presidente do PT é a deputada Gleisi Hoffmann, pondera Rosário; a bancada feminina do partido na Casa é de quase 50% das cadeiras. No entanto, observa, os líderes do partido, nos últimos anos e a exemplo da maioria das legendas, são homens.
“As mulheres têm uma barreira maior para chegar ao parlamento, participar de campanhas… E nisso a maternidade é um desafio porque se coloca em meio às responsabilidades que o cargo exige e à atenção que se quer dar ao filho. A gente vive um dilema, porque, se está em tudo, não atende as responsabilidades primeiras no cuidado com a família, os filhos, enfim; se não está, não conquista espaços. Ser mãe é maravilhoso, mas significa uma opção por estar – na ação política ou nas escolhas de vida — sempre com o olhar em cada canto.”
Não deveria existir nada que ficasse indiferente à maternidade, que acredito ser uma condição diferente porque ela é capaz de produzir empatia. Na medida em que se tem alguém sob sua responsabilidade, você também se volta a outras mulheres que vivem a mesma situação. O olhar muda para sempre
Paula Belmonte
Deputada federal (Cidadania-DF)
Em seu primeiro mandato parlamentar e eleita com as bandeiras da infância/juventude e do empreendedorismo, a deputada federal Paula Belmonte (Cidadania-DF), 46, gosta de afirmar, ao ser indagada sobre maternidade, que foi para a política “exatamente por ser mãe”. E ela é mãe de seis filhos, com idades entre 24 e 2 anos.
A parlamentar e empresária, que até ser eleita havia trabalhado exclusivamente na iniciativa privada, contou que, após a volta de um período de quase nove anos morando na Inglaterra, com a família, retornou no começo de 2018 e começou a refletir sobre a candidatura. O mote: a experiência amarga da perda do quarto filho, em 2014, então com dois anos, em um acidente doméstico.
Ao retornar, foi conhecer a realidade de outras localidades do DF. “Fiquei muito impactada. Lembro que um dia, conversando com a [ex-atleta da seleção] Leila, do vôlei, que é muito minha amiga, comentei com ela sobre tantas crianças e jovens que vi sem saneamento básico e o quanto a passividade diante disso me assustou. Como ela ia se candidatar ao Senado com a bandeira do esporte, pensei: por que não sair junto, mas para deputada, com a bandeira da criança?”, lembra. Ambas foram eleitas.
Indagada sobre a receptividade de uma deputada com seu perfil – empresária, neófita e mãe de seis —, Paula se mostrou pouco entusiasmada, por um lado, e, como diz, “desafiada”, por outro. Isso porque, conforme a parlamentar, “a impressão que eu tenho, como cidadã e não só como mãe, é que, quando se traz infância e juventude à pauta como política séria, as pessoas não levam muito a sério. Já falei de assuntos como esses, e teve deputado que riu da minha cara.”
Para os meses que seguem de mandato, a deputada espera reforçar a bandeira de empreendedorismo para falar também às mães. “Quando se fala de políticas para a criança, precisa tratar também das mães’, resume.
Se já enfrentou preconceito de gênero na atividade parlamentar? “Sou uma pessoa que, se eu observo preconceito, isso serve como uma mola para ser ainda melhor. Se houve ou não, não é o meu foco, pois sei que há desafios ainda maiores pela frente”. Por outro lado, admite que o Legislativo ainda é predominantemente masculino, embora haja “um grupo de mulheres fazendo a diferença”.
Janaina Garcia – colaboração para Ecoa
Publicado em: UOL