O país em que queremos viver
Por Maria do Rosário Nunes*
“Mãe, eu te amo”; “Estou na boate, e estão atirando”; “Ligue para a polícia, mãe. Agora. Ele está vindo. Vou morrer”. Essas palavras de amor, e de pavor, foram as últimas de Eddie Jamoldroy, uma das 50 vítimas fatais do atirador que tomou a boate Pulse, em Orlando. Essas pessoas, em sua maioria jovens homossexuais, não foram vítimas apenas de seu algoz, foram também atingidas pelo ódio, a intolerância e o completo descontrole do acesso a armas de fogo nos Estados Unidos. Portanto, neste artigo trataremos de ambos os aspectos da tragédia: a motivação, ou seja, a consideração por alguns de que há pessoas que precisam ser exterminadas, e a facilidade no acesso ao meio utilizado para a eliminação do outro.
A violação de direitos humanos relacionada à orientação sexual e à identidade de gênero constitui um padrão em todo o mundo, envolvendo variados tipos de abusos e discriminações. Tais violações incluem desde a negação de oportunidades de emprego e educação, discriminações relacionadas ao gozo de ampla gama de direitos humanos até estupros, inclusive os chamados corretivos, agressões sexuais, tortura e homicídios, práticas que tendem a ser agravadas por outras formas de violência, ódio e exclusão, baseadas em aspectos como idade, religião, raça/cor, deficiência e situação socioeconômica.
No Brasil, vivemos tempos sombrios em que o conservadorismo avança a passos largos e os direitos individuais estão em xeque. Pautas relativas à identidade de gênero e ao combate à discriminação, principalmente em virtude da orientação sexual, encontram grandes dificuldades para serem apreciadas no Congresso Nacional. Retrocessos estão em curso, movidos por parlamentares que mobilizam esforços para aprovar o Estatuto da Família, que exclui casais homoafetivos do conceito de família; revogar o Decreto 395/2016, que garante o nome social em órgãos da administração pública federal; criar o risível crime de heterofobia por meio do PL 7.382/2010 de Eduardo Cunha; e impedir qualquer reflexão no ambiente educacional sobre a diversidade e os direitos humanos. De sua parte, o governo golpista rebaixou a Secretaria de Direitos Humanos e paralisou suas funções.
Enquanto isso, diariamente são noticiados suicídios, homicídios e agressões praticadas em virtude dessa desumanização perpetrada por discursos de ódio contra a população LGBT e outro grupos em situação de vulnerabilidade. É preciso uma ação ofensiva contra essa realidade que impõe a morte e nega direitos às pessoas LGBT. Que se articula pela via de forças parlamentares retrógradas que buscam impedir que finalmente conquistemos uma legislação que criminalize a homo/trans/lesbofobia. É urgente para o país que saia dessa condição.
Cientes dos dados alarmantes de violência contra LGBTs no Brasil e da inexistência em nosso ordenamento jurídico de legislação que puna esses crimes, apresentamos, em parceria com o Conselho Nacional LGBT, o Projeto de Lei 7582/2014, que tipifica e criminaliza os crimes de ódio e intolerância, bem como de incitação a esses crimes, dentre eles os motivados pelo preconceito e discriminação contra LGBTs.
Nosso PL define como crime de ódio a ofensa à vida, à integridade corporal, ou à saúde de outrem motivada por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência. Abarcando os LGBTs, mas também outros grupos vulneráveis e vítimas do ódio e da intolerância em nossa sociedade que também necessitam de uma legislação que os assegure uma vida livre de violência.
Ao tipificar a prática, indução ou incitação à discriminação ou preconceito como crime, pretendemos incidir ainda na construção de uma cultura de valorização dos direitos humanos, de respeito e propagação destes direitos, e de enfrentamento ao ódio, à intolerância, ao preconceito e a discriminações. Trata-se, assim, de uma legislação penal, mas que não se limita apenas à definição e punição dos crimes, mas à disseminação de uma perspectiva de prevenção e inibição pela via educativa.
Prevê, além do reconhecimento da motivação real do crime e do agravante de pena ao crime principal, a suspensão da posse ou restrição do porte de armas quando constatada a prática de crimes de ódio e/ou de intolerância, o que nos leva ao segundo aspecto que abordaremos neste texto.
Sobreviventes e familiares dos que saíram da boate Pulse sem vida receberam apoio de todo o mundo, ao qual nos somamos, mas também viram sua dor ser instrumentalizada pela pior forma de política: a oportunista, conservadora e retrógrada, bastante distinta da luta libertária de pessoas que perderam suas vidas pelo que eram. O candidato republicano à Casa Branca Donald Trump instigou ainda mais o ódio utilizando-se do medo que acomete qualquer ser humano quando defrontado com o horror, defendendo a proibição da entrada de muçulmanos naquele país pelo fato de o assassino tratar-se de filho de afegãos.
O que Trump não diz em seus discursos inflamados é que o atirador comprou legalmente as armas de fogo que utilizou no crime. Fez como muitos dos norte-americanos, não só nascidos e criados, como ele, naquele país, mas descendentes de outros norte-americanos, que foram artífices de tantos massacres. Segundo estatísticas da ONG Mass Shooting Tracker, apenas em 2015 houve 372 dos chamados tiroteios em massa, em que pelo menos quatro pessoas morreram ou foram feridas nos EUA. Eles resultaram em 475 mortes e 1.870 feridos. Em 2016, já houve 137 tiroteios em massa no país, incluindo o de Orlando, com 213 mortos e 548 feridos.
O pior massacre com armas de fogo da história dos Estados Unidos, que para muitos pode parecer não ter paralelo no Brasil, está na verdade extremamente próximo de nós. Dados do Escritório sobre Drogas e Crimes da ONU apontam que 70% dos homicídios no Brasil são praticados por armas de fogo, indicando que a alta circulação destas armas é, também em nosso país, um dos principais propulsores da violência letal.
Diferente dos Estados Unidos, os atentados em massa não são comuns aqui, em parte porque nossa legislação é muito menos permissiva que a norte-americana e avançou com a instituição do Estatuto do Desarmamento. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) identifica uma correlação entre o recolhimento de armas determinado pelo Estatuto e a diminuição em 12,6% na taxa de homicídios do país, em 2013. Reino Unido e Austrália são também exemplos de países que diminuíram significativamente os homicídios após aprovarem leis mais rígidas de circulação de armas.
Na contramão do mundo e dos dados, na Câmara dos Deputados convivemos com inúmeras tentativas de deslegitimar o Estatuto do Desarmamento, que visam revogar pontos importantes desta norma. Sob o argumento da proteção individual dos cidadãos e cidadãs, defendem o descontrole da circulação de armas de fogo que, como sabemos, acaba abastecendo o crime e facilitando que pessoas como autor dos assassinatos em Orlando possam ter ao alcance das mãos o que necessitam para disseminar o mal.
Enfrentar essa lógica perversa passa pela construção de legislações que impeçam esse descontrole no acesso a armamentos, combinadas a políticas de enfrentamento ao tráfico de armas. É preciso ainda uma legislação que reconheça a igualdade, puna os crimes de ódio, tal como a que propomos, bem como mudanças na ordem cultural, lentas e graduais, que só serão possíveis por meio do livre debate e da construção de uma educação emancipadora.
O massacre de Orlando deve nos instar à reflexão. O que fazia grande parte daqueles meninos e meninas quando os tiros foram iniciados? Dançavam, sorriam, se beijavam, se expressavam sem medo, por estarem em um local no qual não sofriam com as costumeiras discriminações. Não estavam seguros, não estarão seguros, não estaremos, enquanto existir a cultura do ódio e não garantirmos que qualquer pessoa, independente da orientação sexual, tenha o mesmo status e reconhecimento em nossa sociedade.
Referindo-se à legislação de controle de armas, em seu 13º discurso em apenas oito anos sobre tiroteios, o presidente Obama afirmou: “Temos que decidir se esse é o país onde queremos viver. E a atitude de não fazer nada é uma decisão também”. É preciso que nos perguntemos o mesmo. Queremos um país marcado pelo ódio, a intolerância, a livre circulação de armas que facilita a ação vil dos que não aceitam a vivência humana em sua diversidade? A resposta é não! Construamos juntos o país em que todos possamos viver de maneira plena o que somos. Um pequeno passo neste sentido seria a aprovação do PL 7582 de 2014.
* Maria do Rosário Nunes (PT-RS) é deputada federal
Publicado em Revista Fórum