Nada mais que a verdade?
Entidades pressionam governo e Congresso para a criação das Comissões da Verdade, para esclarecer fatos e circunstâncias de casos de violações de direitos humanos durante a ditadura militar. Mas o caminho é árduo
Em 1970, o governo militar brasileiro decidiu batalhar nos organismos internacionais pela ampliação de seu território marítimo. A obsessão, que começou na caserna e chegou ao Palácio do Planalto, era por ampliar de 12 para 200 milhas náuticas a faixa que pertencia ao país – só depois disso o mar ficaria livre para a exploração internacional. Faltavam poucos meses para o fim da Copa do Mundo, quando as detentas do presídio Tiradentes, em São Paulo, escolheram esse tema para a tradicional rodada de debates coletivos. Esse era o momento mais aguardado por elas, mais até que as partidas da Copa. Feitas as primeiras intervenções, ficou claro que a opinião predominante era contra o alargamento dos limites brasileiros no oceano, pois isso só traria benefícios para o regime.
Veio da presa mineira Dilma Vana Rousseff, ex-militante da organização Vanguarda Popular Revolucionária, a opinião discordante. “Um dia a ditadura vai acabar e as 200 milhas serão melhor para o Brasil.” Companheira de cela de Dilma durante quatro meses, Rose Nogueira guardou na memória esse episódio. Quarenta anos depois, ela preside o braço paulista do grupo Tortura Nunca Mais e Dilma, o Brasil. As duas se reencontraram na posse, em Brasília, mas não tocaram no único assunto que ainda as une: a criação da Comissão da Verdade, projeto enviado pelo Executivo e que está na fila para ser votado na Câmara dos Deputados. Para Rose, a posição de Dilma no famoso debate ilustra bem a forma como ela costuma tratar temas delicados: com a cabeça, e não com o fígado. Segundo essa lógica, seria um engano achar que, por ter sido ela própria uma vítima da ditadura, Dilma vai avançar milhas náuticas além de Lula na política de apuração dos crimes cometidos nos anos de chumbo.
O projeto, que aguarda sua vez de entrar em pauta no parlamento, é, como se sabe, uma versão suavizada. No final de 2009, os militares ameaçaram uma “rebelião” política contra pontos do projeto. Eles temiam que a revogação da Lei de Anistia levasse a um processo de caça às bruxas entre generais de pijama, que cometeram crimes de tortura. A pretensão de Paulo Vannuchi, então secretário nacional dos Direitos Humanos, era colocar o Brasil no mesmo patamar de Chile e Argentina, países que deram de ombros às ameaças da caserna e puniram seus militares criminosos. Lula acabou cedendo, e o texto passou por uma “lipoaspiração política” antes de ser jogado na gaveta do Congresso, onde adormece até hoje.
Passado no retrovisor
O passado guerrilheiro de Dilma não prejudicou sua campanha à Presidência, mas gerou enormes expectativas sobre sua posição em relação aos crimes cometidos nos anos de chumbo. Além do passado, a presidenta tem outro forte argumento para rever o projeto suavizado. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil, no final de 2010, por não ter punido os responsáveis pelas mortes e pelos desaparecimentos da Guerrilha do Araguaia. E ordenou ao Estado brasileiro “a investigação penal dos fatos do presente caso (Guerrilha do Araguaia) a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais”, além de punir criminalmente os responsáveis.
Munida de argumentos, a presidente da ONG Tortura Nunca Mais no Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, tenta marcar uma audiência com a presidenta. E avisa: o grupo vai lançar uma ofensiva para mudar o projeto. “Queremos emendas na lei que cria a Comissão da Verdade. Do jeito que está, é uma Comissão Nacional da Mentira. O projeto é capenga, mentiroso e limitado”, acusa. Cecília, que prepara um documento para entregar ao governo, defende que o Planalto e o Congresso sejam pressionados. Afinal, diz, ela, só com vontade política a comissão sairá do papel. O Projeto de lei foi enviado por Lula em maio de 2010 e, até agora, praticamente não tramitou. Michel Temer, quando ainda presidia a Casa, chegou a assinar um ato de criação de uma comissão, para discutir e votar o projeto. Mas nenhum líder partidário indicou representantes. Ao tomar posse, a nova ministra da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, sinalizou que o tema não será sua prioridade – e, sim, os direitos de crianças e adolescentes. Mas prometeu que lutará para colocar o assunto em pauta. Ex-presos políticos, ouvidos pela revista Fórum, viram com reservas a escolha de Maria do Rosário, uma vez que ela não tem a mesma relação histórica com o Movimento de Direitos Humanos que seu antecessor, Paulo Vannuchi, ele próprio um ex-preso.
Divisão e trâmite na Câmara
O debate sobre o nível de radicalização do debate e quem deve ser o alvo da pressão causou uma divisão no Movimento de Direitos Humanos. Presidente do braço paulista do grupo Tortura Nunca Mais, a ex-companheira de cela de Dilma, Rose Nogueira, não acha que o Palácio do Planalto deve ser pressionado. “É o Congresso que deve trabalhar em cima do projeto.” Ao contrário de Cecília Coimbra, do Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, ela não defende que o projeto que cria a Comissão da Verdade seja alterado. Rose lembra que a expressão “Comissão Nacional da Mentira”, utilizada por Cecília, é a mesma que o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), representante dos militares na Câmara, usa em seus discursos. “O presidente Lula nunca nos recebeu e FHC, apenas uma vez, no primeiro mandato. Espero que Dilma aja diferente, mas sabemos que não temos força neste governo”, sustenta Cecília.
Outro ponto de discórdia é a escolha de José Genoino, ex-guerrilheiro do Araguaia, para assessorar o ministro da Defesa, Nelson Jobim. “A ida de Genoino para a Defesa é péssima. Como pode um sobrevivente do Araguaia aliar-se ao ministro dos militares?”, questiona Cecília. Já Rose diz apenas que não tem opinião formada a esse respeito. Pelo menos, nesse ponto, Jair Bolsonaro concorda. “Colocar o Genoino na Defesa é como chamar o Fernandinho Beira-Mar na Justiça. O Exército não engoliu isso. Não esqueceram a participação dele (no Araguaia). Se não tivessem aniquilado o Araguaia, teríamos hoje uma Farc no coração do Brasil”.
Por mais que Dilma Rousseff se esforce, o caminho até a aprovação da Comissão da Verdade no Congresso não será tranquilo. “Acredito que não passará, porque a base conservadora da Câmara e a do Senado é muito forte. A direita em peso vai votar contra”, avalia o cientista político Ruda Ricci. Curiosamente, Bolsonaro se diz “pessimista”. “Vai passar, porque o Congresso se comporta como um ministério do governo”. Segundo Bolsonaro, o maior medo da caserna é que “saiam chutando a porta dos generais e levando embora seus computadores”.
Para Maurice Politi, coordenador do programa de direito à verdade da Secretaria de Direitos Humanos, o projeto deve ser aprovado. “Acho que agora existem melhores condições, porque o debate se solidificou nos últimos meses. O próprio ministro da Defesa disse que não é contra. A pressão, agora, tem que ser sobre os deputados”. Porta-bandeira dos direitos humanos na Câmara, o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) não teme uma contraofensiva dos militares para barrar o projeto. “Basta que meia dúzia de militares de pijama batam o pé para que o governo fale em crise e o Jobim saia correndo. A verdade é que eles não têm projeto de poder ou pensamento crítico, mas criam crises inconsequentes. Há ambiente político para se rever a lei. Não existe perdão para quem torturou.” Valente diz, ainda, que o principal adversário da Comissão da Verdade é outro: a imprensa tradicional. “O Brilhante Ulstra, por exemplo, é protegido pelos militares da reserva, e a mídia não faz nada porque é reacionária e conservadora. A campanha contra o PNDH 3 veio da grande imprensa. Temos que tensionar.”
Um dos mais influentes deputados da Câmara, Paulo Teixeira, líder do PT na Casa, promete: o projeto será aprovado. “O acordo foi feito, mas não pode ir além do seu propósito inicial. Para punir os militares que participaram de tortura, seria preciso de outra lei ”.
Bronca pública
Em seus primeiros dias no cargo, a presidenta Dilma Rousseff repreendeu o general José Elito de Carvalho Siqueira, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), por dizer, em entrevista, que “não é motivo de vergonha para o país o desaparecimento de presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985)”. Foi a primeira bronca pública do novo governo.
Entenda o projeto
Segundo o Projeto de lei do governo que está parado na Câmara, os objetivos da Comissão da Verdade é identificar e tornar públicos os locais onde foram cometidos crimes, esclarecer fatos e circunstâncias de casos de violações de direitos humanos e colaborar para a apuração dessas violações. Tudo isso, porém, sempre observando os limites da Lei da Anistia.
Lei da Anistia X OEA
Para cumprir a determinação da OEA, Brasil precisa revogar Lei da Anitistia
Para atender à exigência da Corte da OEA de identificar e punir os torturadores do Araguaia, o Brasil precisaria revogar a Lei da Anistia. Em vigor desde 1979, ela impede o julgamento de agentes do Estado que participaram de atos de violação dos direitos humanos. Ocorre, porém, que o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos desde 1992. Em 1998, o então presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu também a jurisdição da Corte Americana de Direitos Humanos, criada em 1979. Na Argentina e no Uruguai, por exemplo, as leis de anistia foram suspensas. Já Nelson Jobim, ministro da Defesa, defende que a corte internacional não pode se sobrepor à interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da Lei da Anistia. Para o Supremo, a lei beneficiou as duas partes.
Por Pedro Venceslau
Publicado em Revista Fórum