Lei da Escuta Protegida pretende humanizar depoimentos de crianças e adolescentes

Em maio de 2016 o Brasil se chocou com o caso de estupro coletivo de uma menina de 16 anos, no Rio de Janeiro. Além da incredulidade que o crime já trazia por si só, a forma como a jovem foi atendida na delegacia gerou indignação. Durante o depoimento, o delegado fez especulações e perguntas desrespeitosas, o que acarretou seu afastamento do caso. Foi a partir dessa situação, que a Lei nº 13.431, conhecida como Lei da Escuta Protegida conseguiu a urgência necessária para ser aprovada em abril no Senado.

O projeto, de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT), contou com a participação jurídica do desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, José Antônio Daltoé Cezar. Além do jurista, o Centro de Referência no Atendimento Infantojuvenil (Crai), conselheiros tutelares, movimentos de defesa pelo direito das crianças e Unicef fizeram intervenções no texto.

A lei propõe um método especializado para a coleta de depoimento de crianças e adolescentes. A técnica é baseada em limitar o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade. Para isso, são feitas perguntas abertas, que propiciam o diálogo com a vítima. Daltoé explica que assistentes sociais e psicólogos são capacitados para fazer essa escuta. “A criança conversa com o técnico de maneira informal, e na audiência propriamente dita se fazem as perguntas abertas. Perguntas fechadas sugestionam respostas, podendo inclusive, criar falsas memórias para essa criança”, esclarece.

Nesse novo processo, a criança deve ser ouvida o mínimo possível, evitando repetidos relatos. De qualquer forma, isso não significa que ela será ouvida uma única vez. “A ideia é escutar com respeito, dentro da rede, e mantendo a confiança. A criança não pode ser passada de um lado para o outro como se fosse uma coisa”, salienta Maria do Rosário. Ao não seguir essa técnica, o agente pode estar causando a revitimização, que na nova lei, é vista como violência institucionalizada.

Além da violência institucionalizada, estão inseridas nesse rol, a violência física, sexual e psicológica, incluindo bullying e alienação parental. A lei também garante medidas protetivas para as vítimas, o que antes não era possível.

Para Maria do Rosário, a nova legislação normatiza e cria protocolos de atendimento. “Tratamos a rede como um todo. Há um saber da professora, do conselho tutelar, do sistema de saúde. Temos que juntar esses saberes e nos formar mutuamente”. Ela ainda avalia que o texto traz mais possibilidade de responsabilização dos abusadores. “Temos que ver na criança, uma criança. O abuso não está na vítima, não é ela que faz o abuso acontecer, e sim a atitude do abusador”, ressalta.

Daltoé explica que o novo processo exige mais tempo e dedicação dos agentes, por essa razão muitos juízes não aderem ao depoimento especial. No Rio Grande do Sul, apenas 20% dos depoimentos são feitos com o uso da técnica. “Por mais que demande mais esforço, não podemos abrir mão desse método. Não se pode perguntar para uma criança da mesma forma que se pergunta a um adulto”, salienta. Para o desembargador, a aplicação da lei não é capaz de mudar a realidade. É preciso mudar a cultura dentro dos sistemas de saúde, justiça, educação e segurança pública.

CNJ fará operação para identificar necessidades de comarcas

A Justiça gaúcha já disponibiliza 42 salas prontas para a escuta especializada, e até ano que vem o número deve chegar a 70. Mas essa não é a realidade da maioria dos estados. No Rio de Janeiro há duas, em Santa Catarina somente uma. Para isso a Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) deve organizar uma operação logística para avaliar a necessidade das comarcas. “São cerca de 164 comarcas que precisam de investimento. Somos os mais avançados, levando em conta que 25% do Estado já conta com a estrutura”, aponta Daltoé. O desembargador acredita que parcerias com o município para capacitação de técnicos também é uma realidade possível.

Para Maria do Rosário, a lei abre caminhos para estudar e legislar sobre o sistema de garantia de maneira geral. A deputada ainda indica que falta participação da União em financiamento de políticas públicas da área da infância. “Temos sistema de saúde, educação, assistência social, todas com recursos específicos, mas não há um sistema de garantia de direitos das crianças e adolescentes”, lamenta.

 

Laura Franco, especial

Publicado em: Jornal do Comércio

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