Em curso na Câmara, reforma política pode aprofundar desigualdades
Discussão entra em fase decisiva, na qual serão deliberados o sistema eleitoral e o formato do financiamento das campanhas
Enquanto os noticiários destacam as constantes denúncias de corrupção e a consequente crise institucional, política e econômica em que nosso País se encontra, a Câmara dos Deputados discute longe dos holofotes os rumos do sistema político brasileiro.
Fragmentação partidária, abuso do poder econômico, sub-representação de minorias sociais são apenas alguns dos aspectos nefastos do sistema atual e para os quais os legisladores devem buscar construir soluções.
Contudo, num processo em que próprios jogadores estabelecem as regras da partida que irão disputar, é fundamental que a sociedade esteja informada para que possa acompanhar e se posicionar em relação a esse processo.
Até o presente momento, a comissão da Reforma Política, na qual sou membro titular, já debateu e aprovou projetos de lei de incremento à democracia direta, como o que passa possibilitar a coleta de assinaturas eletrônicas para apresentação de projetos de iniciativa popular, e estabeleceu a unificação dos prazos de desincompatibilização.
Estes projetos são positivos e para serem validados precisam ser aprovados pelo plenário.
Mas a reforma entra, agora, em sua fase decisiva, na qual serão deliberados, entre outros aspectos, o sistema eleitoral e o formato do financiamento das campanhas.
Em primeiro lugar é preciso que repudiemos que após ter sido derrotado em plenário no ano 2015 o “distritão” seja desenterrado.
Em síntese, neste sistema os candidatos mais votados do Estado ou município, no caso de eleição para vereador, seriam os eleitos. Apesar de se tratar de um modelo de simples inteligibilidade, traz consigo problemas ainda maiores que os encontrados no sistema atual.
Não por acaso o “distritão” vigora apenas no Afeganistão, na Jordânia e em alguns pequenos países insulares – e é um dos mais criticados por especialistas.
Sua aprovação dificultaria a eleição de candidatos novos ou representantes de minorias sociais, pois beneficiaria aqueles que já possuem mandatos, ou exposição midiática, tornando ainda mais difícil a eleição de lideranças associativas, militantes de movimentos sociais, de cidadãos e cidadãs comuns de maneira geral.
Por fim, particularmente num contexto como o nosso, não é menor o fato de que nos anos 1990 o Japão tenha abandonado esse sistema sob a alegação de que favorecia a lógica da disputa individual, não programática, e fomentava a corrupção.
Mas essa não é a única ameaça à qualidade da democracia brasileira que está em curso.
A proposta de relatório apresentada à Comissão propõem que em 2020 seja adotado o que tem sido chamado de “distrital-misto”.
Neste formato o eleitor daria dois votos, um no partido e outro para um nome que concorreria no distrito, assim uma parte dos representantes seria eleita pela lista fechada e outra pela fórmula majoritária.
Atualmente esse sistema é utilizado em apenas seis países, dentre eles Filipinas e Lituânia, e foi abandonado na Rússia e na Ucrânia.
Para o Brasil trata-se de um sistema confuso, onde na parte majoritária o “distrital-misto” traria os vícios presentes em qualquer sistema deste tipo que, ao centrar ainda mais as campanhas na figura do candidato, aprofunda o hiperpersonalismo, enfraquece os partidos e não investe que esses apresentem programas efetivos na arena eleitoral, levando a uma incongruência entre a proporção de votos recebidos pelos partidos e o número de cadeiras a ser ocupado por estes.
Diante da profunda crise de confiança nas instituições, consideramos que seria no mínimo temerária uma alteração constitucional desta magnitude, razão pela qual propomos a manutenção do sistema proporcional aliado ao fim das coligações, e do estabelecimento de um sistema intermediário entre as listas abertas, pouco compatíveis com um financiamento público, e as listas fechadas, as listas flexíveis.
Para além do sistema eleitoral nos preocupa sobremaneira o formato do financiamento de campanha, pois ainda que a proibição das contribuições de empresas tenha sido uma conquista fundamental, esta deve ser acompanhada de outros mecanismos como a proibição do autofinanciamento de campanha e estabelecimento de teto de gastos de campanha.
Tais medidas que permitiriam maior isonomia deveriam ainda ser complementadas por uma previsão de doações de pessoas físicas com limites baixos, somada ao financiamento público com controle firme dos gastos eleitorais sobre responsabilidade dos partidos e não feitos pelos candidatos.
Todos esses elementos que consideramos centrais estavam presentes no relatório inicial do deputado Vicente Cândido, mas foram flexibilizados em sua segunda versão e, ao que tudo indica, poderão ser ainda mais.
O esforço político louvável do parlamentar deve ser reforçado pela sociedade, no sentido do fortalecimento de propostas que aprofundem a democracia e não transformem a boa proposta de uma Reforma Política em iniciativas voltadas à mera permanência dos que atualmente exercem mandatos.
Os CNPJs não podem simplesmente serem substituídos pelos CPFs no financiamento de campanha. O engajamento do eleitor é desejável e sua contribuição financeira deve ser permitida, desde que não represente o aprofundamento do abuso do poder econômico.
A combinação entre o estabelecimento de um sistema majoritário, o descontrole do financiamento de pessoas físicas e a permissão do autofinanciamento de campanha pode transformar um sistema político elitista em um sistema plutocrático, completamente capturado pelo poder do dinheiro.
Não podemos permitir que nossa democracia combalida seja ainda mais atacada.
Sobre a Reforma Política já se disse que sua necessidade é unanime. Qual Reforma Política? É a pergunta que devemos nos fazer para influenciarmos as diretrizes desta que mais uma vez está colocada em curso.
Que seja para ampliar a democracia com maior poder direto para o cidadão e a cidadã e resgatar confiança essencial na democracia.
*Maria do Rosário, deputada federal (PT-RS)
Publicado em Carta Capital