Aos inimigos, a lei
As instituições prisionais, a força policial, as normas jurídicas e sua aplicação conforme as conhecemos hoje não surgiram do nada, tampouco por acaso. No estudo sobre os sistemas de punição reunidos em Vigiar e Punir (1975), Michel Foucault mostra como os conceitos de crime e penas variaram historicamente até que se pudessem constituir, já nas sociedades industriais, não somente uma forma de supressão das infrações à lei, mas uma forma de administração dos perigos de um novo ilegalismo popular.
Em outras palavras, na passagem do século XVIII ao século XIX, houve um cruzamento entre conflitos sociais, resistências aos efeitos da industrialização e crises econômicas, movimentos operários e partidos republicanos. O resultado foi a elaboração de políticas para punir os ilegalismos operários: desde a destruição de máquinas, passando pela proibição de constituir associações, o abandono de serviço, a vadiagem. Nessas condições, diz Foucault, seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo e em nome de todo mundo. Seria mais prudente reconhecer que ela é feita por alguns e se aplica a outros, principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas. Nesse sentido, permanece uma série de ilegalidades, diferente dos crimes contra a propriedade e a ordem política, que não se tornou alvos de repressão e encarceramento.
A produção da delinquência e seu investimento pelo aparelho penal nunca cessaram de encontrar resistências. Verifica-se, então, que já nas sociedades industriais, as ações operárias foram acusadas de serem animadas por simples criminosos e os veredictos aplicados contra operários muitas vezes foram mais severos do que os aplicados aos ladrões. Este trabalho de aproximação entre a delinquência e a contestação da ordem política se completou com a disseminação da imprensa policial. O noticiário torna aceitável o conjunto de controles sociais que vigiam a sociedade, constituindo um boletim cotidiano de alarme ou de vitória.
Vigiar e Punir foi publicado no Brasil por uma editora católica, a Vozes, de Petrópolis (RJ), durante a ditadura civil-militar, em 1977. Estava em curso o processo de “distensão lenta, segura e gradual” do general Ernesto Geisel, que assumira o poder três anos antes. Foi o ano de revogação do Ato Institucional número 5, que concedia poder irrestrito aos governantes com direito à censura a meios de comunicação, fechamento do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais e suspendia uma série de direitos civis, como a proibição das manifestações e atividades de assuntos de natureza política e a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos.
A Constituição Federal de 1988 consolidou o processo de redemocratização do Brasil. Se a ditadura civil-militar brasileira era um regime de exceção – situação caracterizada pela suspensão do estado de direito e de garantias constitucionais – o País passaria a ser um Estado democrático de Direito. Além da realização periódica de eleições, tínhamos de volta as tais garantias suspensas em duas décadas de regime militar, como liberdade de expressão, de locomoção, de associação, inviolabilidade da vida privada e de domicílio, o sigilo de correspondência e dados bancários, entre outras.
Recentemente, a explosão de manifestações ao longo deste ano em grande parte das capitais brasileiras colocou em xeque alguns limites do Estado democrático de Direito. Nesta semana, a ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário atribuiu a “resquícios da ditadura” os ataques das polícias militares a jornalistas e manifestantes nos protestos de 13 de junho em São Paulo e durante a Copa das Confederações, no Rio de Janeiro. A ministra aparentemente se referia ao processo de formação dos policiais e à estrutura da instituição. Entretanto, o tratamento autoritário e violento dispensado à população nas manifestações políticas atuais tem muito mais a ver com processos que transcorrem dentro da mais perfeita legalidade democrática que com resquícios do estado de exceção.
Atualmente os crimes contra a ordem política e social no Brasil são enquadrados na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983). A lei foi usada para enquadrar os manifestantes Humberto Caporelli e Luana Lopes, presos na primeira semana de outubro por suposta participação em atos de vandalismo na segunda-feira 6 no centro de São Paulo. Entretanto, desde o início da onda de protestos de 2013, o que se observa no tratamento dado aos manifestantes e aos supostos casos de vandalismo é uma combinação de instrumentos legislativos que não se restringem às leis do tempo da ditadura; ao contrário, estão em perfeita harmonia com os princípios do Estado democrático de Direito atual.
A proibição do uso de máscaras em protestos, por exemplo, está de acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, o mesmo que garante a livre a manifestação do pensamento e a inviolabilidade da intimidade, vida privada, a honra e a imagem das pessoas, uma vez que a lei estabelece que nessa livre expressão é vedado o anonimato. Do mesmo modo, a nova lei sobre organizações criminosas (lei 12.850 de 12 de agosto de 2013), que está sendo usada para punir atos de vandalismo em manifestações (pena de três a oito anos de prisão), passou por todos os processos legais, próprios de regimes democráticos, antes de ser sancionada pela presidenta democraticamente eleita.
A lei considera organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas, mediante a prática de infrações penais. A pena por constituir, financiar ou integrar organização criminosa varia de 3 a 8 anos de reclusão mais multa. O texto também afirma que em qualquer fase da persecução penal serão permitidos como meios de obtenção da prova o acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais; interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas e afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal.
Parece, portanto, mais adequado considerar que o tratamento dispensado aos manifestantes pelas autoridades, mais do que um resquício da ditadura, aponta para a seletividade penal a qual se referia Foucault em Vigiar e Punir há 38 anos. Os novos instrumentos legais trazem consigo a ampliação da vigilância. No dia 15 de outubro, após novos confrontos entre policiais e manifestantes, o responsável pela Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI) do Rio de Janeiro, Gilson Perdigão, afirmou em entrevista ao jornal O Globo, afirmou que a publicação de comentários e fotos em apoio aos atos de vandalismo em redes sociais também poderá ser considerada crime. Os autores de postagens poderão responder pelo artigo 286 do Código Penal (incitação ao crime). Isso quer dizer que a liberdade de expressão garantida constitucionalmente está sujeita à penalização.
Verificamos no momento político presente uma atualização dos alvos preferenciais da repressão policial e do encarceramento, toda uma produção de indivíduos perigosos, os vândalos, mistura de delinquentes com subversivos, aqueles que segundo boa parte dos grandes meios de comunicação seriam os responsáveis pelo início dos conflitos, aqueles que provocam danos à propriedade privada, que se diferenciam dos “verdadeiros manifestantes”, que no entendimento do senso comum devem ser pacíficos; são eles que justificam o endurecimento das penas, que trazem de volta o uso da bala de borracha.
O estado de exceção permanece no passado porque agora não é mais necessário, já que no cerne do Estado democrático de Direito existem dispositivos suficientes para lidar com os insurgentes políticos, tornando-os mais uma vez alvos preferenciais das forças repressivas e da prisão. Enquanto isso acontece, os noticiários continuam a traduzir este conjunto de controles das condutas em termos como um boletim cotidiano de alarme. Resta saber se os dispositivos de exceção serão suficientes para afastar das ruas uma multidão de pessoas nascidas após o retorno da democracia e que parecem interessadas em confrontar os limites impostos pelo Estado à participação política popular.
Por Fhoutine Marie (professora universitária e cientista política)
Publicado em Carta Capital