A democracia sob cortina de fumaça: a suposta “eficiência” da Câmara dos Deputados
Por Maria do Rosário*
“A Câmara dos Deputados nunca trabalhou tanto”, “número recorde de projetos de lei foram votados e aprovados nos últimos 6 meses”, e mais, “a Câmara agora tem uma agenda própria, independente do Executivo”. Essas afirmações já presentes no discurso de alguns parlamentares, sem dúvida, serão o carro-chefe do pronunciamento à nação do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, na sexta-feira, 17 de julho. Diante de uma sociedade que demonstra baixo percentual de aprovação às suas instituições políticas, os números que serão informados podem mesmo parecer animadores. Mas não podemos nos limitar às aparências, e para irmos além dela é necessário ter como referência a dimensão democrática.
A suposta eficiência destes primeiros meses de 2015 está sendo implementada com alto custo democrático ao país, tendo como objetivo viabilizar uma agenda de retrocessos em direitos e promover um estilo de exercício do poder que fomenta uma lógica de conflitos sistemáticos.
O cenário é composto por Projetos de Lei propostos e votados em menos de 48 horas; propostas idênticas apreciadas mais de uma vez; uma reforma política que nos levou no sentido contrário ao enfrentamento à corrupção, que teria como base necessária a redução da influência do poder econômico nos processos eleitorais; atentados aos direitos fundamentais votados em sequência numa máquina irrefreável; e o abreviamento de procedimentos e a interdição do debate. Nos últimos tempos, destaca-se nesta Casa o investimento exclusivo na obtenção da maioria de votos dos parlamentares ou em interpretações regimentais, sem apreço à construção de soluções efetivas pelo diálogo.
É extremamente perigoso à essência da democracia resumi-la a um sistema de maiorias. Se esta é uma referência importante, não se pode dela retirar a qualidade de um sistema de garantias essenciais ao Estado Democrático de Direito, dos quais destaco dois aspectos: 1) O caráter universal dos direitos à totalidade de indivíduos, sem exclusões de qualquer ordem; 2) A observância de procedimentos formais no comando das instituições, que assegure a transparência de seus atos, participação social e cumprimento das regras instituídas.
Não é secundário que a Constituição, as leis e regimentos das duas Casas do Congresso (além do regimento comum) determinem os procedimentos e limites dos assuntos a serem tratados e que devem ser observados na elaboração de normas. A formalidade de ritos institucionais não serve ao mero interesse interno das mesmas, mas a regular seus procedimentos para assegurar o interesse público que tem como referência a Constituição.
O processo legislativo está estruturado em etapas : 1) propõe-se o projeto; 2) o presidente da Casa determina em quais comissões este será analisado; 3) em cada comissão, o projeto recebe um relator que o analisa e emite parecer com relatório e voto. Dependendo da complexidade da matéria, são chamadas audiências com especialistas da área e movimentos sociais; 4) em cada uma das comissões para os quais foi designado, o projeto é debatido por todos os parlamentares, podendo receber votos em separado daqueles que discordarem do relator, e apenas após esse processo ser votado; 5) passagem obrigatória de qualquer projeto, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) verifica a adequação da proposta à Constituição; 6) após a aprovação nas comissões, há duas opções: a) projetos de trâmite terminativo não precisam passar pelo plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa; b) projetos com necessidade de análise em plenário. Em ambos os casos, os projetos devem ser aprovados com o quórum exigido para sua categoria: Emenda à Constituição (3/5 dos votantes e dois turnos de votação); Lei Complementar (maioria absoluta); Lei Ordinária (maioria simples).
Todas as etapas do processo legislativo são importantes para que os parlamentares e a sociedade possam obter o máximo de informações sobre os projetos a serem analisados. Trâmites estáveis são garantia de não predominância de posições eventuais, iniciativas populistas associadas a fatos específicos, ou tiranias que desconsiderem contribuições de representações minoritárias. Permitem ainda que a sociedade, especialistas, grupos sociais e culturais possam participar do diálogo com parlamentares na construção de alternativas a partir de múltiplos pontos de vista.
No entanto, com vistas a implementar uma agenda retrógrada associada aos movimentos políticos de constantes ataques ao governo eleito em 2014, por vezes com claros contornos golpistas, a observância destes aspectos não foi prioridade nos seis primeiros meses de 2015, na Câmara dos Deputados. E ainda que se argumente em contrário, citando as decisões nas quais ministros do Supremo Tribunal Federal não acataram liminarmente recursos às votações sobre financiamento empresarial de campanhas e a redução da maioridade penal, isso não afasta a certeza de que os métodos em curso não favorecem um Estado Democrático.
Um exemplo é paradigmático do momento corrente. O PL 2259/2015, proposto em 7 de julho, foi posto em votação no dia seguinte a sua proposição. Sob o apelo dos deputados, aceitou-se postergar por apenas 24 horas a análise. Nas duas sessões legislativas seguintes – em 9 e 14 de julho – o projeto foi aprovado na íntegra. Ou seja, antes de se finalizar a reforma política da Constituição, programada para 15 de julho, foram votadas as regras infraconstitucionais. E destaque-se: não se tratava de projeto simples.
Foram alteradas as regras para o financiamento privado, estabelecendo tetos altíssimos de contribuição, tão altos que falar em teto soa como mascarar a realidade, a manutenção do registro do partido mesmo que a sigla seja condenada pela Justiça Eleitoral por falta de prestação de contas ou por sua desaprovação total ou parcial das mesmas, limites ao tempo de campanha e de televisão que favorecem os parlamentares com maior visibilidade e recursos, bem como a proibição de participação em debates de TV de candidatos cujos partidos não tenham um mínimo de 10 deputados federais, excluindo assim, por exemplo, candidatos do PSOL. Esses são apenas alguns pontos da minirreforma eleitoral aprovada em sete dias pela Câmara sem análise da CCJC, sem debate com a sociedade e que teve como principal resultado o silenciamento dos partidos minoritários.
Questiono um desses casos: qual seria a relevância e interesse nacional inadiável do PL 4148/2008, que dispensa as indústrias de informarem no rótulo se o produto comercializado tem origem transgênica? Pois bem, este projeto foi aprovado em 28 de abril deste ano após aprovação de requerimento de urgência. O texto que derruba a atual lei, de 2003, que estabelece a obrigatoriedade da informação de transgenia por meio de um símbolo estampado no rótulo, é uma afronta ao direito de escolha do consumidor, mas foi aprovado pela Casa sem o devido debate e como se interesse da população o fosse.
Ademais, as próprias comissões vivem hoje sob pressão para terem seus projetos votados de forma rápida, temendo que estes sejam levados a plenário sem apreciação, principalmente após o processo enfrentado pela Comissão Especial da PEC 181/07. Criada para debater a Reforma Política, esta foi extinta sem votação do seu relatório final, desconsiderando o acúmulo de seus meses de trabalho. Após discordância com o encaminhamento proposto pelo relator, bastou um dia para o presidente da Casa nomear relator “ad hoc” em plenário e votar a proposta.
O caso da Comissão Especial da PEC 171/1993, que tratava da redução da maioridade penal, também é significativo. A Comissão poderia durar até 40 sessões, mas terminou abruptamente na 24º sessão sem ter cumprido grande parte dos requerimentos de audiências propostos e aprovados. A matéria foi então levada a plenário e rejeitada no dia 1º de julho de 2015. No dia seguinte, proposta com trechos idênticos, foi novamente votada e desta vez aprovada. O mesmo sistema de votação dúplice foi utilizado para a aprovação do financiamento privado de campanhas.
Se o processo de construção é essencial, o conteúdo também o é. E muito. É grave que estejam em debate na Câmara dos Deputados várias propostas destinadas a restringir direitos fundamentais. Fora a já tratada redução da maioridade, como exemplos temos propostas que visam ao descontrole das regras que limitam o porte de arma; a proposta de emenda constitucional que reduz a idade para o trabalho infantil; o projeto de lei que pretende excluir da definição de família uniões homoafetivas, dentre outros.
A agenda conservadora imposta neste primeiro semestre deve continuar dando o tom das votações nos próximos meses. É da competência da presidência da Casa, a organização da pauta legislativa. Entretanto, essa “independência da agenda” da Câmara, na verdade, representa o exercício da manipulação de um bloco ultraconservador para o cumprimento de sua vontade.
Como se não bastassem todos esses problemas de condução do processo legislativo, os movimentos sociais têm sido constantemente impedidos de andar pelos corredores da Casa, de permanecerem em plenário e de se manifestarem. Na votação da PEC 171/1993, o movimento estudantil teve habeas corpus preventivo deferido para garantir sua permanência no local. Esse histórico de fechamento dos portões nos motivou a propor Projeto de Resolução que proíbe o impedimento prévio de entrada de qualquer pessoa (PRC 30/2015).
Estamos diante de um quadro em que conquistas históricas obtidas nos últimos 25 anos em relação ao direito de crianças e adolescentes, direitos das mulheres, das negras e negros, laicidade estatal e direitos humanos em geral estão ameaçadas por projetos que as afrontam diretamente, e pautas progressistas para a garantia de direitos da população LGBT, dos indígenas, das populações tradicionais, dos movimentos sociais estão obstaculizadas.
A composição do Congresso Nacional mais conservador desde 1964, segundo o DIAP, tem sido realmente eficaz em pautar o conservadorismo e impedir avanços necessários a consolidação dos direitos humanos. O desafio dos parlamentares que representam um campo progressista de ideias e de direitos é produzir uma unidade não apenas na atuação interna na Câmara dos Deputados, mas contribuir na mobilização de um movimento popular e social capaz de barrar retrocessos, enfrentar a onda golpista e defender os direitos humanos no Brasil.
* Maria do Rosário é deputada federal (PT-RS)
Publicado em Revista Fórum