Sobre o que chamam “ideologia de gênero”
Por Maria do Rosário*
Foi assim na discussão do Plano Nacional de Educação (PNE), na qual em âmbito nacional e local embargou-se o diálogo sobre todos os pontos relativos à promoção da igualdade de gênero e do respeito à orientação sexual.
A pressão parlamentar não se restringe ao cotidiano do Congresso. Para que estes temas se tornem invisíveis, a pressão desdobra-se contra os próprios órgãos governamentais, a ponto de o MEC ter modificado portaria que emitiu para constituir o Comitê de Gênero apenas doze dias após seu lançamento, retirando a palavra que estes setores não aceitam que seja dita.
Superar a lógica da desinformação que permeia o populismo moralista em voga é essencial. Para isso, consideramos importante precisar termos presentes neste debate. O conceito de gênero questiona a essencialidade da diferença entre os sexos, reforçando que características comportamentais apresentadas como femininas ou masculinas são construções sociais com conteúdos distintos em diferentes culturas e períodos históricos.
Por meio da compreensão do gênero enquanto constructo foi possível identificar como a distinção entre o masculino e o feminino esteve diretamente relacionada à imposição de um lugar de subordinação às mulheres. Uma sintética definição poderia ser de que o sexo é biológico e o gênero é social e cultural.
Para Joan Scott, gênero não se trata apenas de uma percepção sobre as diferenças sexuais, mas da hierarquização destas. A autora feminista não desconhece em seu trabalho a existência de diferenças entre os corpos de homens e mulheres, mas aponta que há uma construção dos significados culturais dessas diferenças. Que normatização da sexualidade opera como um mecanismo violento e opressor que define o que é ou não aceitável, inteligível e adequado para cada gênero.
A orientação sexual, por sua vez, representa a identidade de gênero, a percepção de si próprio que cada pessoa tem em relação ao direcionamento de seus desejos e afetos no plano da sexualidade. Michel Foucault, sobretudo no primeiro volume de A história da Sexualidade, afirma que aquilo que aparece como uma substância, a separação binária dos sexos, na verdade não espelha qualquer essência humana, senão a sua capacidade de reproduzir performaticamente esta distinção arbitrária, de modo que a heterossexualidade que ela comporta aparenta ser natural.
Estaríamos diante, portanto, de uma prática reguladora, de uma norma discursiva fundada no postulado de uma heterossexualidade compulsória, da chamada heteronormatividade. Assim, gênero e orientação sexual são dimensões da identidade humana que articulam-se a várias outras, compondo indivíduos únicos, singulares, participantes de uma humanidade diversa e plural.
Por que a bancada fundamentalista estabelece uma verdadeira cruzada contra as categorias “identidade de gênero” e “orientação sexual”? Este setor considera estes conceitos essenciais na explicação do que chamam “ideologia de gênero”. O discurso sobre a sexualidade e a normatização da vida das pessoas possui um forte componente associado ao exercício do poder.
Por meio da díade por eles estabelecida de natureza/verdade, argumentam que o sexo biológico define o ser, bem como seu lugar na sociedade. Assim, outorgam-se o título de defensores do universal e atacam o que consideram como posições particulares, ideológicas, se colocam, portanto, numa condição de neutralidade que não ocupam, pois o que fazem na prática é buscar impor valores religiosos a toda a sociedade.
Afirmam que a tal “ideologia de gênero” deturpa os conceitos de homem e mulher a fim de destruir o modelo tradicional de família. Promovem preceitos biologizantes que desconsideram mais de um século de pesquisas no âmbito das ciências sociais, se fiando em aspectos da anatomia humana para normatizar a sexualidade e o comportamento, oprimindo os/as que segundo seu padrão são considerados “desviantes”; o fazem sem reconhecer os diversos arranjos familiares, reforçando ainda hierarquias internas a estas que perpetuam a opressão e, por vezes, a violência.
O principal exemplo disso é o malfadado Estatuto da Família (PL 6583 /2013), que estabelece que a família deve deter proteção especial do Estado, mas limita esta a apenas os núcleos sociais formados pela união de um homem e de uma mulher. Flagrantemente inconstitucional, o texto aprovado na Câmara esta semana fere o Art. 3, inciso IV da Carta Magna que estabelece como objetivo fundamental da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Buscando cercear direitos individuais – em especial os sexuais e reprodutivos – e impedir que construamos uma nação em que todos e todas tenham igualdade de direitos e uma vida livre de discriminação e violência, setores fundamentalistas unem-se a outras forças retrógradas da política brasileira para aprofundar a lógica de que há cidadãos de duas categorias: uns plenos em direitos e outros que podem estar sujeitos a toda sorte de vulnerabilidade, pois não são merecedores de direitos.
Tal ofensiva articulada guarda relação com a crescente mobilização do movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros (LGBTT) e do movimento feminista no último período, bem como com as decisões do Judiciário norteadas pelo respeito às diferenças e vedação à discriminação. A ofensiva conservadora trata-se, portanto, de resposta a avanços conquistados por aqueles e aquelas que durante muito tempo foram invisíveis, mas cuja organização e a luta permitiram que o combate à homofobia e ao machismo entrasse na agenda política.
O Estado Democrático de Direito precisa garantir os direitos à livre orientação sexual, à igualdade de gênero, bem como combater a discriminação. Para tal, é pressuposto que este Estado seja laico, que não promova um grupo em detrimento de outro, menos ainda reprima a diversidade presente na sociedade em prol de preceitos religiosos, portanto pertencente a grupos específicos, não universais. Não se pode impor ao outro uma forma de viver com base em um ideal normativo, sob pena de promover o ódio e a intolerância.
Precisamos nos fazer entender, dizer para a sociedade que lutamos que a singularidade de cada indivíduo seja respeitada, para que nossa sociedade não reproduza o preconceito, que garanta a pluralidade e diversidade que caracterizam a contemporaneidade. Não é legítima a imposição de padrões de vida, relacionamentos humanos, por parte do Estado.
Nenhum grupo com qualquer ideal filosófico, ainda que detentor de uma numerosa bancada parlamentar, pode impor sua visão de mundo a quem quer que seja. Estejamos em alerta, é exatamente isso que setores buscam no Brasil, e é claro que começam pela interdição da identidade de gênero e da livre orientação sexual.
* Maria do Rosário (PT-RS) é deputada federal
Publicado em Revista Fórum