Os bastidores do golpe
“É deveras absurda a aprovação da redução da maioridade penal, mas ainda pior é a afronta à democracia. Foi dado o recado, o presidente da Casa não aceita questionamentos, nem que matérias de seu interesse sejam derrotadas, toda forma de manobra é permitida. A sociedade precisa saber que a democracia foi vilipendiada”, denuncia, em artigo, a deputada Maria do Rosário (PT-RS)
Por Maria do Rosário*
(Ministro Marcos Aurélio Melo, 02/07/2015)
Na madrugada de quarta-feira, 30 de junho, a Câmara dos Deputados rejeitou proposta de emenda constitucional que previa a imputabilidade de adolescentes a partir de dezesseis anos. A juventude que se mobilizou em todo país e tomou o gramado da Esplanada com seu acampamento, e a frente suprapartidária que lutou incansavelmente e disputou cada voto, tendo como principal arma o diálogo, conquistaram uma importante vitória cuja comemoração durou menos de 24 horas. Um golpe, nos moldes do que ocorreu na votação do financiamento empresarial de campanha, foi dado, transformando a Casa que deveria ser uma das guardiãs da democracia em sua principal inimiga.
Desde sua eleição no início deste ano, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, deixou nítido que cumpriria seus compromissos de campanha com as bancadas mais conservadoras do Parlamento, que atenderia aos anseios dos ruralistas, dos que defendem as restrições dos direitos civis e sexuais, e dos arautos do populismo-penal.
Assim, de maneira intimamente articulada, Cunha já aprovou em primeiro turno praticamente toda a sua contrarreforma política; trabalha firmemente para a aprovação da PEC 215, que inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a demarcação das terras indígenas, bem como a PEC 1610/96 que dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas; apoia e dá andamento ao Estatuto da Família, que constitucionaliza um formato excludente de família; a revisão do Estatuto do Desarmamento; a permissão para que associações religiosas tornem-se proponentes de Ações Diretas de Inconstitucionalidade; e a redução da idade mínima para o trabalho de adolescentes. De outro lado, a direção da Mesa fecha as portas para quaisquer proposições que vise à promoção e defesa dos direitos humanos.
Matéria cara a grande parte de sua base na Câmara, a redução da maioridade penal foi tratada como prioridade zero de Cunha. Para sua aprovação passou a valer tudo, violação da Constituição no interior da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJC), que ao aprovar a admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição nº 171-A, de 1993 ignorou o princípio da irrevogabilidade de direitos fundamentais; açodamento dos trabalhos da Comissão Especial destinada a proferir parecer à PEC, que foi arbitrariamente finalizada quando ainda estava na metade dos trabalhos; e o golpe de 1 de julho, sobre o qual me debruçarei de maneira mais detida a fim de contribuir para elucidar a afronta à democracia que ora vivenciamos.
Como é de conhecimento, na votação do substitutivo apresentado pela Comissão Especial, e, portanto com preferência com relação ao texto original, a redução da maioridade penal não foi recepcionada porque não conseguiu alcançar os 308 votos necessários para a aprovação de emenda constitucional. Considerando que ainda havia o texto original em debate, que possuía conteúdo diferente do substitutivo por reduzir a maioridade penal de forma linear, este deveria ser votado, mas não foi o que aconteceu. Negando o pedido de continuidade da sessão feito pelos parlamentares, Cunha utilizou-se de manobras inconstitucionais para deliberar sobre o texto que considerou mais adequado ao seu objetivo, reverter a decisão do Plenário e a aprovar a redução.
Segundo o Art. 60, § 5º da Constituição Federal, é vedado que uma matéria rejeitada seja novamente apreciada na mesma sessão legislativa ordinária, que tem início em 2 de fevereiro, é interrompida em 17 de julho, reiniciada em 1º de agosto e encerrada em 22 de dezembro. A Emenda aglutinativa nº.16, de autoria dos Deputados André Moura (PSC) e Rogério Rosso (PSD) aprovada na madrugada do dia 2 tratam da mesma matéria na totalidade de seu art.2º e parcialmente no art.1º, qual seja: redução da imputabilidade de adolescentes a partir dos 16 anos em caso de crimes hediondos, homicídio doloso, e lesão corporal seguida de morte. Ou seja, só poderia voltar ser apreciada em fevereiro de 2016.
Tal como afirmou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Coelho: “Temos que ter a clareza que a alteração tópica da redação de uma PEC não é suficiente para retirar um fato: a matéria foi rejeitada em um dia e aprovado no dia seguinte. É justamente este fenômeno que a Constituição proíbe (…). Como regra da Constituição, deve ser respeitada. Trata-se do devido processo legislativo. Existe para que maiorias ocasionais não sufoquem as minorias”.
Está claro que, em desrespeito a Constituição Federal, o presidente da Câmara, um dia após a Casa rejeitar o substitutivo em questão, colocou em votação emenda praticamente idêntica. Diante disso a questão fica é: porque os parlamentares favoráveis à redução da maioridade penal optaram por utilizar expediente inconstitucional ao invés de votar o texto original? Estes sabiam que não alcançariam 3/5 dos votos caso apresentassem seu programa máximo, a redução da maioridade penal para qualquer tipo de delito.
Ao longo dos últimos anos, vivenciamos a espetacularização da violência por meio de programas sensacionalistas que, sem base real, creditavam aos adolescentes a autoria da maioria dos crimes. Durante o curto período de debate entre a discussão sobre a admissibilidade na CCJC e a votação em Plenário, a mesma tática foi utilizada, a do falseamento da realidade. Buscando reverter os votos de parlamentares críticos, que poderiam ter derrotado Cunha, inclusive na segunda votação, os defensores da redução apresentaram proposições que diziam ser mais brandas.
Muitos desses parlamentares críticos convergiam conosco em vários pontos, buscando tanto quanto nós respostas reais para o enfrentamento à escalada da violência, reconheciam que a redução entregaria os adolescentes infratores a partir de 16 anos ao crime organizado que comanda o sistema prisional brasileiro, e levaria ao recrutamento de adolescentes cada vez mais jovens para o crime.
Apesar do discurso, na prática o substitutivo tratava-se de um engodo. O texto induzia parlamentares de boa-fé, e a sociedade como um todo, a crer que este versava sobre os chamados crimes de sangue, enquanto na verdade incluía crimes de menor potencial como a falsificação, adulteração ou venda de produto como cosméticos ou sem características de qualidade, o roubo com causa de aumento de pena, e o tráfico de entorpecentes, cuja diferenciação do porte de drogas para consumo próprio ainda se dá de forma discricionária, mais orientada pela cor da pele e a classe social do indivíduo, do que por elementos objetivos, mensuráveis e justos.
Diferente da impressão que seus defensores mais árduos tentavam passar, caso tivesse sido aprovada, a mudança teria amplo impacto, pois atingiria 80% dos delitos praticados por menores de 18 anos, como o trabalho de “mula” e “aviãozinho” dentro do tráfico de drogas (41%) e o roubo qualificado (39%). A emenda aglutinativa aprovada buscou mais uma vez levar a sociedade e os parlamentares a incorrer no erro, ao substituir os crimes previstos no art. 5º, inciso XLIII, por crimes hediondos, alterou a redação, sem mudar o conteúdo, uma vez mais falseou a realidade, e pior, abriu a possibilidade para que, por meio de legislação ordinária, venham a ser incluídos inúmeros tipos penais para os quais a imputabilidade a partir dos 16 anos passará a ser válida. O dispositivo que apontava a separação dos menores de 18 anos dos adultos, na prática dificilmente seria respeitado, dado que, a Lei de Execuções Penais, de 1984, já determina a separação dos detentos por idade e tipo do delito, mas isso jamais ocorreu.
Não é preciso entender de leis ou direito para se constatar que o texto votado no dia 2 era, em grande medida, idêntico ao rejeitado na noite anterior. A modificação foi apenas a retirada de parte do inciso I e a supressão dos incisos IV e V, mas de resto o texto é o mesmo, as palavras são as mesmas, os crimes são os mesmos. Independente da opinião a respeito da matéria votada – ou seja, se você é contra ou favor a redução – é preciso que todos saibam: o processo democrático foi ferido mortalmente!
A proposta só foi aprovada porque, em menos de um dia, 24 deputados que inicialmente haviam votado contra a redução da maioridade penal alteraram o voto. Seis deputados que faltaram à primeira votação compareceram à segunda para votar sim, e outros sete que apoiaram o texto na madrugada de quarta faltaram na madrugada seguinte. Cabe nos perguntarmos, quais os motivos levaram à mudança de opinião? Alguns alegaram pressões da base, um deputado do PMDB afirmou ter sido ameaçado por colegas, o que mais se passou em tão curto espaço de tempo?
Dormimos com um resultado, acordamos com a declaração de Cunha de que a Casa ainda teria que votar o texto principal, mas que isso só ocorreria após o recesso parlamentar de julho. No fim da noite o texto original foi ignorado, e a redução foi aprovada. Não se trata mais do mérito da questão simplesmente, é deveras absurda a aprovação da redução da maioridade penal, mas ainda pior é a afronta à democracia. Foi dado o recado, o presidente da Casa não aceita questionamentos, nem que matérias de seu interesse sejam derrotadas, toda forma de manobra é permitida. A sociedade precisa saber que a democracia foi vilipendiada.
* Maria do Rosário (PT-RS) é deputada federal
Publicado em Revista Fórum