Contestada por especialistas e estudantes, Câmara aprova MP 746

Da RBA*

A Câmara dos Deputados aprovou quarta-feira (7) por 263 votos a favor, 106 contrários e três abstenções o texto-base da medida provisória (MP) 746 que modifica a estrutura curricular do ensino médio. A medida foi enviada ao Congresso em setembro e vem sendo alvo de fortes contestações, de protestos de intelectuais e especialistas a ocupações de escolas secundaristas e universidades.

Os protestos da comunidade educacional e movimentos sociais têm origem na forma – proposta de alteração drástica no ensino feita por meio de MP e passando por cima de todos os debates do setor nos últimos anos – e no conteúdo. Segundo os movimentos críticos à MP 746, ela aponta para um ensino médio que tende a agravar a evasão escolar, a desigualdade social e educacional, piorar a qualidade na formação de cidadãos com pensamento crítico e desestimular o interesse dos jovens para o ingresso no magistério.

A discussão da medida nesta quarta-feira sofreu obstrução de PT, PCdoB, Psol e outros partidos de oposição. Além das críticas conceituais, os contrários ao texto argumentam que a falta de investimento do setor vai inviabilizar medidas propostas, como o ensino integral. O deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) disse que poucos alunos serão beneficiados. “A proposta traz aumento de 1.400 horas só no enunciado, mas a meta é de 500 mil alunos e somos 8,3 milhões de estudantes. Estamos fazendo duas escolas no país: uma que vai ter tudo e uma que não vai ter nada”, declarou.

A votação da MP ocorreu após acordo do líder do governo André Moura (PSC-SE) com deputados da oposição. Pelo combinado, os destaques – alterações em trechos específicos do texto – ficaram para ser discutidos na próxima semana, também em votação nominal. “Em uma matéria tão importante e controversa como essa é importante que a população brasileira saiba como cada deputado votou”, defendeu a vice-líder do PT, Maria do Rosário (RS).

“Em 30 anos de trabalho com educação, nunca vi uma reforma educacional ser aplicada dessa forma”, contesta o doutor em Educação Antonio Batista, coordenador de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), , em entrevista ao site da União Nacional dos Estudantes (UNE). A presidenta da entidade, Carina Viral ressalta a falta de de tempo para resolver falhas no processo. “Somos os mais interessados em uma boa reforma, mas, para que ela seja realmente boa, queremos dar opinião”, afirma Carina.

*Com informações da Agência Câmara

RAIO-X DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO
Fonte: UNE

1- Optativas: alguns jovens podem escolher, outros não
A possibilidade de flexibilizar o currículo, ou seja, do jovem poder escolher o que quer estudar, é bem vista por boa parte da comunidade educacional e até prevista pelo Plano Nacional de Educação, que sugere a existência de conteúdos eletivos. Mas há um grande risco do modo como está colocada.
Cada escola não é obrigada a oferecer todas as opções. “Os jovens não poderão escolher, como dizem os defensores da medida. Quem determina qual a oferta de itinerários não são os alunos, e sim o sistema de ensino”, explica Monica Ribeiro.
Daniel Cara aponta ainda outra ressalva, lembrando que o modelo proposto é muito semelhante ao colegial de antigamente, já substituído por ser equivocado: “A opção deveria ser por disciplina, como em outros lugares do mundo, e não por área. A ideia é que um jovem pudesse escolher, por exemplo, estudar matemática financeira e história da África, se assim lhe interessasse, e não ter que optar entre exatas ou humanas.

2- Integral, que integral?
Para cumprir o Plano Nacional de Educação, que tem como meta ao menos 50% das escolas públicas com ensino integral até 2024, não basta mudar leis. “O Ministério da Educação prontifica-se a repassar uma verba para dar condições nos primeiros 4 anos, corrigidos para 10 pós emendas, mas e depois?”, pergunta-se Cara, que lembra que uma emenda constitucional quer impedir aumento real dos gastos por 20 anos.
O perigo é de ainda mais aulas vagas por falta de professor ou maior período de trabalho para os profissionais atuais, que já são escassos e mal remunerados. “Se já não há merenda suficiente hoje, como será com mais escolas em período integral, se a PEC 55 quer a verba congelada por 20 anos?”, questiona Camila Lanes, da Ubes.
Para a entidade, “aumentar a carga horária das escolas e não solucionar os problemas da educação pública em âmbito nacional não significa avançar, mas sim retroceder. A medida pode até mesmo colaborar para o crescimento das taxas de evasão escolar no Brasil”.

3- Como fica o período noturno?
O Cenpec chamou atenção, assim como muitos movimentos, para falta de menção na MP ao período noturno, frequentado por 1,9 milhão de estudantes, ou 23,6% do total de matrículas, de acordo com o Censo Escolar 2015. “Não pensar uma alternativa para o período da noite é não ouvir os estudantes”, critica Daniel Cara. Após as emendas, a antiga medida provisória, agora PL 34, cita a existência dele, sem especificar como será.

4- Base Comum: parte do currículo será fixo, só falta saber qual é
A reforma curricular criou alarde, assim que anunciada, pois retirou da Lei de Diretrizes e Bases a obrigação de disciplinas como filosofia, sociologia, educação física e artes. O secretário da Educação Básica Rossieli Soares da Silva veio a público para esclarecer que “tudo que estiver na Base Curricular Comum Nacional será contemplado”, logo conteúdos artísticos poderiam fazer parte do itinerário de Linguagens ou conteúdos de Filosofia poderiam fazer parte de Ciências Humanas, por exemplo. Mas a pergunta que fica é: qual base curricular?
Para especialistas, é impensável mudar a estrutura do currículo antes de saber quais são e como organizar os conteúdos obrigatórios, já que a lei da Base Comum do Ensino Médio ainda não foi definida e, pelos trâmites normais, só deve vigorar a partir de 2018.
Uma emenda na MP, hoje PL 34, garantiu que ao menos a base comum ocupasse 60% da carga horária, e não 50%, como proposto inicialmente.

5- Ensino técnico: a escolha é entre um serviço ou uma formação
Segundo a reforma da Medida Provisória, se um jovem optar pelo ensino técnico, por um ano e meio ele estudará apenas as disciplinas da profissão escolhida, e fora isso só português e matemática.
“É um arremedo, um simulacro de formação”, afirma Monica Ribeiro, ao explicar que o ensino integrado é esperado, mas que tal formato não contempla a contento nem a formação básica, nem a profissional. Daniel Cara lembra: “O Brasil já tem um formato de educação profissional que dá certo, o das escolas técnicas federais. A diferença é que o custo por aluno é muito mais alto. É este o padrão que queremos”.
Para Iria Brzeeinski, presidente da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope), a proposta “configura um retrocesso de décadas, ao instituir, sob o argumento da flexibilização, uma precarização do ensino”.

6- Interesses privados
“A profissionalização como uma das opções formativas resultará em uma forma indiscriminada e igualmente precária de formação técnico-profissional, acentuada pela privatização por meio de parcerias”, lembra a doutora em Educação Monica Ribeiro. Para Daniel Cara, um ponto grave na reforma é a grande flexibilidade para parcerias público-privadas, no itinerário de formação técnica e profissional. Os convênios podem ser feitos sem edital.

7- Notório saber – quem é que sabe?
Enquanto as comunidades escolares e especialistas defendem a valorização do professor para superar problemas do Ensino Médio, a Medida Provisória prevê a contratação de especialistas sem graduação em Pedagogia ou licenciatura para lecionar nos itinerários de ensino técnico. Pior: o próprio sistema de ensino poderá conceder o “notório saber” para estes profissionais, e não instituições isentas.
O Cenpec observa: “Ainda que os gestores tenham dificuldades de contratar e reter os profissionais com melhor formação e essa seja uma saída de curto prazo, essa medida pode ter efeitos colaterais a médio e longo prazo. Pois pode resultar na ampliação as desigualdades de oportunidade educacionais e da rotatividade docente, impactando, inclusive, a formação continuada dos professores”.

8- O Fundeb e o cobertor curto
Alterar a lei do Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb) com a reforma é um ponto ressaltado pelos críticos. Enquanto a mudança permite que o fundo seja usado para criação dos itinerários do Ensino Médio, eles dizem que vai faltar dinheiro para a educação infantil, hoje prioridade desta verba.
“É apenas descobrir uma área para cobrir outra. Vai faltar verba para os municípios garantirem creche para todos”, diz Daniel Cara.
Ele denuncia também uma mudança que torna o uso do dinheiro público muito flexível, no caso de parcerias para o ensino técnico, e permite que sejam feitas sem formalização do convênio. O Movimento pelo Ensino Médio é taxativo: “Essa medida visa, claramente, atender aos interesses do empresariado e suas necessidades de exploração e lucro”.

Publicado em Sul21

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