A defesa da laicidade do Estado como pressuposto para a democracia

* Por Maria do Rosário

A definição de Estado Laico sempre foi alvo de disputa. Mesmo que exista reconhecimento social quase universal, o conceito de que a separação mais concreta entre o Estado e religiões preserva direitos fundamentais sofre questionamentos de tempos em tempos.

A defesa de maior permeabilidade do conceito voltou à tela recentemente no Congresso Nacional. Foi apresentado projeto de lei destinado a instituir o Estatuto Jurídico da Liberdade Religiosa, o PL 1219/2015. Nele, se define que “a laicidade do Estado brasileiro não significa a ausência de religião ou o banimento de manifestações religiosas nos espaços públicos ou privados, antes compreende o respeito e valorização da fé religiosa da nação, tendente ao favorecimento da expressão religiosa, individual ou coletivamente (art. 28, parágrafo único).

A designação de laicidade do projeto mais se assemelha à definição de um Estado religioso do que um reflexo da regra constitucional da laicidade. Seus artigos incluem ressalvas que, na prática, permitem qualquer interpretação, abrindo janelas de interface concreta entre Estado e interesses religiosos específicos. É uma proposição que pode gerar incertezas em vez de garantias.

Nossa Constituição já assegura no rol de direitos fundamentais nela albergados a liberdade de crença e de culto, liberdade essa que só pode ser realizada a toda e qualquer religião justamente por um Estado que não professe nenhuma religião. Por isso mesmo, em seu artigo 19, I, a Constituição impõe: “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

O debate sobre laicidade envolve a garantia e o respeito de direitos humanos para religiões minoritárias, pessoas sem religião e pessoas cujos direitos podem ser afetados, negados e até violados pelos preceitos das religiões dominantes.

Por muito tempo, uma das maiores acusações feitas contra o projeto de criminalização da homofobia – o PLC 122/06 – era que cercearia a liberdade de expressão das pessoas que professam religiões que consideram a homossexualidade pecado. O projeto não fazia isso. Apenas possuía a legítima proposta de proibir a discriminação e os discursos de ódio.

Hoje, o projeto de Estatuto da Liberdade Religiosa entra neste debate e pretende não considerar como discurso de ódio determinados dogmas. Pode-se dizer que o projeto faz a ressalva de que tais intervenções devem ser feitas com respeito a direitos fundamentais. No entanto, é preciso sempre lembrar que o discurso de ódio em si já é uma violação de direitos fundamentais, palavras têm força, ferem, matam, legitimam e incentivam violência. Quando alguém afirma que outra pessoa é “menos” por ser quem ela é ou acreditar no que ela acredita, está sim legitimando a discriminação e a violência contra essa pessoa.

Por isso, nossa lógica é oposta. Não queremos legalizar a ofensa e, sim, punir a discriminação contra qualquer pessoa, inclusive as discriminações por motivos religiosos. É muito preocupante que hoje não consigamos travar um debate sério sobre crimes de ódio. Propus o PL 7582/2014 para definir como crime de ódio a violência contra pessoas em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência, sendo-lhe asseguradas as oportunidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social e como intolerância a discriminação praticada contra esses grupos.

Os valores fundamentalistas hoje presentes no Congresso Nacional utilizam argumentos religiosos para embasar propostas de redução da idade penal dos adolescentes, descontrole do uso de armamentos, incentivos financeiros para não permitir que mulheres estupradas se submetam ao aborto legal, o ensino do criacionismo nas escolas, a retirada dos debates sobre gênero, raça, orientação sexual e identidade de gênero. Esse mesmo fundamentalismo cria todo um debate com pessoas que se afirmam como ex-gays num claro intuito de retornar a proposta da “cura gay”, e busca impor um Estatuto da Família que exclui imenso número de famílias brasileiras constituídas por laços de amor e afeto.

Vivemos ainda um processo de transição, em que o Estado Democrático de Direito segue em construção e tem como pressuposto a laicidade. Não podemos flertar com nenhum tipo de legislação que vise subjugar as minorias, não podemos assistir meninas apedrejadas em função de sua religião, terreiros criminalmente incendiados, e tantas outras manifestações de ódio e intolerância. O Brasil que queremos construir baseia-se no respeito mútuo, no direito de cristãos, judeus, integrantes das religiões de matriz africanas, de professarem ou não uma fé.

Vivemos tempos sombrios em todo o mundo, em que sob o argumento civilizatório se subjuga o outro, sob o argumento da fé, vidas são tiradas ou destroçadas. Não permitiremos que este estado de coisas finque raízes em nosso país.


* Maria do Rosário é deputada federal (PT-RS) e ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República

Publicado em Revista Fórum

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